National Geographic - Portugal - Edição 233 (2020-08)

(Antfer) #1
A CRISE DA ÁGUA NA ÍNDIA 57

O Ganga: rio sagrado


VOU CAMINHANDO JUNTO ÀS MARGENS de Ma
Ganga, Mãe Ganges, até a sua correnteza arquear
para norte, cortando as planícies amarelas de Vara-
nasi, como uma reluzente lâmina de aço. A cidade
mais sagrada do hinduísmo está envolta em poeira
de tijolo. Milhares de trabalhadores batem nas
paredes do centro histórico de Varanasi com
malhos e pés de cabra, derrubando vielas antigas
e edifícios para implementar um plano de embe-
lezamento urbano. Os moradores foram despeja-
dos. O governo deu-lhes dinheiro. Poucos parecem
felizes. A reencarnação é difícil.
Varanasi é conhecida entre os hindus devotos
como Kashi, ou local “onde brilha a luz suprema”.
Os 88 ghats de pedra da cidade sagrada caem até
ao Ganga em degraus belos e desgastados. Lá em
baixo, os devotos lavam os pecados nas correntes
escuras do rio, bebendo e banhando-se em água
que excede, às centenas, os níveis seguros de bac-
térias fecais. Dezenas de milhares de peregrinos
acorrem todos os anos aos ghats para morrerem
e serem queimados. Ser cremado em Varanasi é
a forma mais segura de alcançar o moksha, esca-
pando ao ciclo doloroso da vida e da morte.
Sento-me e vejo tudo quanto é humano a fun-
dir-se no Ganga. Aqui, o rio apresenta-se em
tons de azul-escuro devido às cinzas de ossos,
um fluxo colossal que resiste a qualquer limpe-
za. De madrugada, andorinhas cruzam o céu cor
de bronze. Penso nos meus mortos e nas minhas
guerras. Varanasi é um bom sítio para aguardar a
criação, ou a destruição, do mundo. Ou, melhor
ainda, para acordar e caminhar.


O Bramaputra: quem é indiano?


O RIO É UMA ESTRADA. Em Bihar, atravesso a pé o
Son, asfixiado pela seca. Na região ocidental de
Bengala, encontro o Tista, ressequido pelas barra-
gens. Em Assam, o lendário Bramaputra corre,
largo, engrossado pelas chuvas e pelo caudal
gerado pelo degelo desastroso dos glaciares.
Homens e mulheres que aparentam ter mil anos
caminham penosamente pelas suas margens are-
nosas, carregando cestos de arroz. Passando por
canoas varadas em terra. Passando por arrozais
que reluzem sob a luz difusa, como espelhos anti-
gos com o revestimento de prata descascado.
O Bramaputra desliza junto de mim. É uma correia
de água com 2.900 quilómetros. Transportando
milhares de milhões de peixes invisíveis, os estali-
dos e burburinhos do ruído da aldeia, o medo.


“Terroristas”, sibilam os bêbedos da aldeia.
No Nordeste da Índia, eu e Siddharth Agarwal
somos frequentemente interrogados. É um sinal
dos tempos. O Paquistão e a Índia voltaram a en-
trar em choque, devido ao disputado território
muçulmano de Caxemira. A xenofobia está ao
rubro. O governo nacionalista hindu de Naren-
dra Modi contribui para agravá-la. Em Assam,
travo conhecimento com uma mulher simpática,
Rupali Bibi, que se esconde como uma fugitiva.
Porquê? Porque, sendo descendente de muçul-
manos do Bangladesh que migraram para a Índia
há quase cem anos, pode ser deportada.
“Um polícia trouxe uma ‘notificação de estran-
geiro’ a minha casa”, conta esta orizicultora, na sua
casa com telhado de canas na planície fluvial do
Bramaputra. “Ele disse que era pessoa suspeita.”
À semelhança de quase dois milhões de outras
pessoas no estado de Assam, ela foi excluída do
Registo Nacional de Cidadãos. As autoridades
não aceitaram os seus documentos. Nas primeiras
semanas da pandemia da COVID-19, quase 200
milhões de indianos muçulmanos foram demo-
nizados como portadores da doença por políticos
hindus de direita. Segundo informações recebi-
das, multidões armadas com bastões de críquete
atacaram muçulmanos em Bengaluru.
Quem é indiano? Quem não é? Poderá a diver-
sificada e secular Índia de Gandhi e Nehru sobre-
viver a um resvalamento para o populismo tribal?
É impossível dizer. O cosmo de rios que entretece
a Índia é, evidentemente, mudo nestas matérias.
Percorro lentamente os últimos quilómetros na
Índia durante as monções de Verão. Os rios de Ma-
nipur, encostados à fronteira com Myanmar, cor-
rem violentos e brancos. Montes verdes falam a lin-
guagem sibilante da água incontida, a precipitação
das quedas de água, a visão de inúmeros riachos, a
chuva caindo sobre os telhados de zinco. Catando
sanguessugas, recordo-me do rio mais estranho
que encontrei na Índia: o Saraswati. Um “rio perdi-
do” do foro mítico, exaltado nas escrituras védicas.
Alguns cientistas acham que parou de correr
há milhares de anos por ter sido desviado por um
terramoto ou talvez se tenha evaporado devido às
alterações climáticas. Atravessei aquele que seria,
supostamente, o seu leito no deserto do Rajastão.
Uma vala larga de seixos cobertos de poeira. Um
vento quente. Nem uma molécula de água à vista.
Agricultores traumatizados pela seca disseram-
-me que os engenheiros do governo andavam a
abrir furos de teste nas proximidades. Tinham es-
peranças de provar que o rio era real. j
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