Preços sem valores / 105
valor se baseia nessas dádivas gratuitas varia, mas trata-se de algo onipresente no
capitalismo contemporâneo11. Não são apenas as dádivas gratuitas da natureza que
estão envolvidas aqui. História, cultura, conhecimento, construções artísticas, ha
bilidades e práticas podem ser cercados, seu conteúdo pode ser apropriado (assim
como o Paraíso perdido de Milton), transformado em mercadoria e comercializado
por um preço, independentemente de qualquer valor que possam engendrar. Há,
na sociedade, muito trabalho realizado de maneira livre e não alienada como o
do bicho-da-seda, mas, assim que seu conteúdo é formado, começa o processo de
cercamento, apropriação, monetização e mercantilizaçáo.
No caso do conhecimento científico e técnico, as dádivas gratuitas da criatividade
humana e do “trabalho do tipo do bicho-da-seda” entram na circulação do capital
de uma maneira diferente. Marx, porém, só está interessado nas criações do que
ele denominou “intelecto geral”, na medida em que afetam a produtividade do tra
balho por meio da formação de capital fixo11 12. Como vimos, sua preocupação era
especificamente como os conhecimentos científicos e tecnológicos se incorporam ao
capital fixo da produção, substituindo e desempoderando a mão de obra por meio da
automação (e, hoje, por meio de robôs e inteligência artificial). Marx considera o co
nhecimento científico em si um bem livre13. Se as demais variáveis permanecerem inal
teradas, a tendência é que o desempoderamento da mão de obra e seu deslocamento
da produção acarretados por mudanças tecnológicas reduza a contribuição do traba
lho, o agente ativo da produção de valor. Isso nos convida a refletir sobre o que acon
teceria se o valor e o mais-valor minguassem ou desaparecessem completamente da
circulação, ainda que o volume de mercadorias físicas em circulação aumente rapi
damente por conta da elevação da produtividade. O hiato entre o aumento na pro
dução física de mercadorias e sua precificação e o decréscimo na produção social de
valor e mais-valor amplia-se catastroficamente, anunciando, no entender de muitos
marxistas, o inelutável caminho em direção ao colapso final do capitalismo.
A vertente alemã de teóricos da crítica do valor, inspirada na obra de Robert
Kurz, tem expressado essa visão de maneira bastante vociferante. Mas não defende
que o colapso é iminente14. Na avaliação de proponentes dessa teoria (inclusive o
próprio Marx, em certos aspectos), tal contradição, um correlato da persistente
preferência no interior do capitalismo por inovações que poupam mão de obra,
abriga uma tendência de longo prazo à estagnação, queda das taxas de lucro e es
treitamento da produção e realização de valor e mais-valor.
11 Ursula Huws, Labor in the Digital Economy, cit.
12 Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 641-54.
13 Ibidem, p. 641.
14 Neil Larsen et al. (orgs.), Marxism and the Critique o f Valué, cit.