A loucura da razão econônica- David Harvey

(mariadeathaydes) #1

56 I A loucura da razão econômica


do vendedor e suscitam batalhas contra as práticas predatórias e a acumulação por
espoliação na esfera do mercado (i.e., contra a gentrificação e as execuções hipote­
cárias). Tais lutas não estão suficientemente teorizadas. No campo da reprodução
social, questões de hierarquia social, gênero, sexualidade, parentesco, família etc.
tornam-se predominantes e o foco político primário desloca-se do processo de tra­
balho para a qualidade da vida cotidiana. Essas lutas são frequentemente ignoradas
na literatura marxista. Lutas em torno da distribuição exigem análise de relações
muitas vezes antagonistas entre diferentes facções do capital e o aparato estatal.
Estas, juntamente com as lutas entre capital e trabalho na esfera do mercado em
torno da taxa salarial, completam o mapa preliminar dos diferentes loci possíveis
de luta política na e em torno da circulação do capital como um todo. Segue-se,
portanto, que as lutas políticas e sociais contra o poder do capital na totalidade
da circulação do capital assumem diferentes formas e exigem diferentes tipos de
aliança estratégica para ter sucesso. Movimentos tradicionais de “esquerda” nem
sempre reconhecem a importância dessas alianças e os compromissos necessários
para fazê-las funcionar. Além disso, há todas aquelas lutas que ocorrem no campo
contextual em que se dá a circulação do capital. A questão não apenas do que é a
natureza humana, mas do que ela pode vir a ser, tem enorme importância política.
A natureza humana que se revela nos defensores de Donald Trump, Geert Wilders,
Marine Le Pen, Recep Tayyip Erdogan, Narendra Modi, Viktor Orbán e Vladi-
mir Putin é muito diferente da dos seguidores de Mahatma Gandhi, do arcebispo
Desmond Tutu, de Nelson Mándela e Evo Morales, que é muito diferente, por sua
vez, daquela dos seguidores de Vladímir Lênin, Fidel Castro, Gamai Abdel Nasser,
Hugo Chávez, Frantz Fanón, Léopold Senghor e Amílcar Cabral. Talvez seja um
clichê comum na política dizer que o coração e a mente das pessoas têm de ser mo­
bilizados, moldados e capturados antes de se perseguir qualquer projeto político-
-econômico, porém não deixa de ser verdade que as lutas políticas em torno do que
podemos chamar talvez de “natureza” da natureza humana estarão certamente na
base das preocupações que surgirão das questões econômicas da circulação do capi­
tal. Mas, como evidencia de forma muito clara, penso eu, a visualização do capital
em movimento, as relações entre o valor que circula como capital e a construção e
reconstrução perpétua dos valores políticos, culturais e estéticos são por si sós uma
questão de grande importância. Contudo, aqueles que priorizam o pensamento e
a luta ativa em torno destas últimas precisam reconhecer que o fazem no contex­
to da circulação do capital que tanto constrange quanto facilita certas formas de
pensamento e ação. Na medida em que o capital está perpétua e necessariamente
envolvido na construção e reconstrução de vontades, necessidades e desejos, ele cria
uma ponte vital entre o que pode parecer dois domínios distintos da ação humana.
Margaret Thatcher, no fim das contas, propôs-se não apenas a mudar a economia

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