A loucura da razão econônica- David Harvey

(mariadeathaydes) #1
Antivalor: a teoria da desvalorização / 83

consumidores são manipulados de todas as formas, diretas e indiretas, para que se
conformem aos padrões do “consumo racional” definido pelo capital, sempre hou­
ve grupos e às vezes movimentos sociais inteiros que resistiram a tais artimanhas.
As escolhas coletivas podem ser exercidas de várias maneiras, inclusive por meio
de políticas de Estado no que diz respeito a benefícios sociais obtidos por pressão de
movimentos políticos de longa data. Há resistências morais, políticas, estéticas, reli­
giosas e até filosóficas. Em alguns casos, a resistência é à própria ideia de mercado-
rizaçâo e restrição de acesso a bens e serviços básicos (como educação, saúde e água
potável) por meio de mecanismos de mercado. Muitos consideram tais bens direitos
humanos básicos, jamais mercadorias que podem ser compradas e vendidas. O anti-
valor que surge de panes e falhas técnicas na circulação do capital se metamorfoseia
em antivalor ativo da resistência política à privatização e à mercadorização.
O antivalor define desse modo um campo ativo de luta anticapitalista. Boico­
tes de consumidores, embora raramente bem-sucedidos, são um sinal desse tipo
de ação política, mas todos os movimentos contra o consumismo conspicuo ou
compensatório constituem uma ameaça política à realização. Os capitalistas pre­
cisam se organizar para conter essa ameaça. Mas a existência de múltiplas lutas e
disputas em torno da política de realização é inegável. Lutas, resistências e agitações
organizadas em torno de questões relativas à vida cotidiana são lugar-comum, in­
dependentemente de serem explicitamente anticapitalistas ou não. Marx não chega
a analisar essas questões. Apenas as assinala de passagem. Mas aqui é evidente a
virtude do quadro geral que ele constrói para representar a circulação do capital.
O valor realizado pode permanecer capital somente se circular de volta para
a produção e for “valorizado” por meio da aplicação do trabalho na produção. E
nesse momento da valorização - quando o dinheiro retorna para refinanciar o pro­
cesso de trabalho - que o capital encontra outra ameaça persistente de negação ati­
va, na figura do trabalhador alienado e recalcitrante. A classe trabalhadora (como
quer que seja definida) é a corporificação do antivalor. É com base nessa concepção
de trabalho alienado que Tronti, Negri e os autonomistas italianos constroem sua
teoria de luta de classes e resistência do trabalho no ponto da produção12. A recusa
de trabalhar é o antivalor personificado. Essa luta de classes ocorre na esfera oculta
da produção. Implica uma política um tanto diferente em relação à política entre
compradores e vendedores que impera no momento da realização. Ao produzir
mais-valor, o trabalhador produz capital e reproduz o capitalista. Ao recusar-se a
trabalhar, o trabalhador se recusa a ambas as coisas.


12 Mario Tronti, “Our Operaismo”, New Lefi Review, 73, 2012; Antonio Negri, Marx além de Marx:
ciência da crise e da subversão. Caderno de trabalho sobre os Grundrisse (São Paulo, Autonomia Lite­
rária, 2016).
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