Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 158 (2020-09)

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10 Le Monde Diplomatique Brasil^ SETEMBRO 2020


oficialmente poucos meses depois do
AI-5. Houve então uma mudança su-
til no léxico até então em uso: a ques-
tão do subdesenvolvimento (que en-
volvia esferas de superação políticas,
sociais, estéticas, culturais e econô-
micas) foi substituída pela questão
do combate à ocupação imperialista.
A estratégia foi a abertura de canais
de financiamento e diálogo e a cons-
trução de um discurso anti-imperia-
lista, acompanhada de leis protecio-
nistas dentro da lógica política de
substituição das importações vigen-
te. Um exemplo dessa mudança de
rumo do cinema está no texto do crí-
tico e realizador Gustavo Dahl, “Mer-
cado é Cultura” (1977). Egresso do Ci-
nema Novo e um de seus ideólogos,
ele se tornou um quadro importante
na Embrafilme a partir do governo
Geisel. Dahl defendia que, “para que
o país tenha um cinema que fale a
sua língua, é indispensável que ele
conheça o terreno onde essa lingua-
gem vai-se exercitar. Esse terreno é
realmente o seu mercado. Nesse sen-
tido explícito, é válido dizer que ‘mer-
cado é cultura’, ou seja, que o merca-
do cinematográfico brasileiro é,
objetivamente, a forma mais simples
da cultura cinematográfica brasilei-
ra”. Ao que parece, houve uma gran-
de transformação no ideólogo do Ci-
nema Novo que defendia o papel
central do artista. Não havia mais o
paraíso da revolução e da emancipa-
ção das consciências a ser alcançado.
O mercado passou a ser o horizonte.
Treze anos de ditadura e sua moder-
nização conservadora convenceram
Dahl e muitos realizadores de sua ge-
ração que era hora de abandonar
suas antigas ideias.^2
Por outro lado, havia o desenvol-
vimento acelerado das telecomuni-
cações, construindo um novo para-
digma cultural, que rapidamente se
tornaria hegemônico. E, como sabe-
mos, a ditadura cuidou para que seus
aliados monopolizassem esses


meios. Os grandes canais de televi-
são incorporaram grande parte dos
criadores de esquerda em seus qua-
dros. Muitos artistas acreditaram,
em um primeiro momento de boa-fé,
que poderiam trazer um toque pes-
soal para essa estrutura, trabalhan-
do sutilmente em suas dramaturgias
os problemas cotidianos da classe
trabalhadora. Os traumas do golpe
fizeram alguns vislumbrar na televi-
são uma possibilidade de falar às
massas, que aceitaram indiferentes a
ditadura (ao menos essa foi a leitura
de grande parte dos intelectuais da
época). Com o tempo, essas aspira-
ções mostraram-se ilusões. Na práti-
ca, as TVs se apropriaram de uma
forma sofisticada, fruto de um acú-
mulo estético e político do teatro
brasileiro, diluindo, no entanto, seu
conteúdo. Essa forma (tendo como
produto principal as telenovelas)
acabou por servir como instrumento
de conciliação da ditadura com a
classe trabalhadora, que, até a ruptu-
ra de 1964, sustentara politicamente
os projetos emancipatórios.^3
A chegada da redemocratização
não arrefeceu a ideia de que mercado
é cultura. Ao contrário, esse se tor-
nou o pensamento hegemônico que
perdura até hoje. Após a destruição,
no governo Collor, da Embrafilme e
de toda a estrutura que sustentava o
cinema brasileiro, as políticas e dis-
cussões públicas apontavam para es-
se caminho. Não à toa, o Ministério
da Cultura de FHC defendia que a
“cultura é um grande negócio”, com
suas leis de incentivo calcadas na de-
cisão das empresas de reverter parte
dos impostos devidos ao Estado em
investimento cultural.
Os anos Lula trariam um modelo
híbrido:^4 se no atacado investia nas
grandes produções, no varejo possi-
bilitava que outras formas também
se manifestassem. O Ministério da
Cultura, com Gilberto Gil à frente,
criou diversos projetos inovadores

que permitiram novos olhares sobre
o Brasil. A busca de descentralização
dos investimentos em produções de
cinema foi um elemento catalisador
para uma explosão criativa que to-
mou conta do país. O fortalecimento
da Ancine e a criação do Fundo Seto-
rial resultariam, na década seguinte,
em uma expansão da produção bra-
sileira sem precedentes (comparável
em número de filmes somente ao ápi-
ce dos anos 1970).
Essa expansão da produção, no
entanto, não foi acompanhada de um
projeto que efetivamente fizesse es-
ses filmes chegar à população brasi-
leira. Não se enfrentou o mercado de
exibição e, quando o governo buscou
enfrentar os monopólios do sistema
de telecomunicações, sofreu uma
fragorosa derrota.
Em todo esse processo, contestou-
-se pouquíssimo a concentração das
salas de exibição, em grande parte
dominadas por empresas norte-ame-
ricanas. A euforia dos realizadores,
vivendo um período inédito de gran-
de f luxo de capital para a produção,
nos fez perder de vista o fundamen-
tal: a criação de uma grande cadeia
de exibição que visasse à maioria de
nosso povo. Na prática, nos mantive-
mos submissos às ordens do merca-
do, produzindo para um nicho eliti-
zado, com poder aquisitivo suficiente
para frequentar salas de cinema. O
preço desse descaso é pago agora
com o silêncio da maioria da popula-
ção diante da morte anunciada do ci-
nema brasileiro.
Vence o capital internacional e
seus aliados locais, somados ao neo-
fundamentalismo cristão, que aos
poucos hegemonizam os espaços,
apagando culturas, transformando
tudo em mero produto de consumo e
eliminando o que não está sob seu
domínio. Perde o cinema brasileiro,
que luta como pode para se manter
em pé, visando um futuro em que as
muitas vozes potentes de nossa cultu-

ra possam viver e sobreviver partici-
pando na construção de nossas múl-
tiplas identidades e modos de vida.
O que a história nos mostra é que
mercado e ditaduras andam juntos
quando lhes é conveniente. Sabemos
aonde isso pode nos levar: censura,
precarização do trabalho, aniquila-
ção das diferenças. Estamos diante
do perigo real de extinção do passado,
presente e futuro de nossa arte cine-
matográfica. Lembremo-nos de nos-
sas lutas pretéritas como um alerta
para o presente. Olhemos para nossa
história, atentos às pistas que podem
abrir os caminhos, conscientes dos
erros que não podemos voltar a come-
ter. Escutemos aqueles que nos prece-
deram e lutaram a luta justa: Zózimo
Bulbul, Glauber Rocha, Ozualdo Can-
deias, Raquel Gerber, Andrea Tonacci,
Helena Solberg, Nelson Pereira dos
Santos, entre tantos outros. Cineastas
que souberam inventar e realizar um
cinema do futuro, sonhar um país
que caiba a todos nós.

*Thiago B. Mendonça, Adirley Queirós,
Affonso Uchoa, Cristina Amaral, Ewer-
ton Belico e Luiz Pretti são realizadorxs
do cinema brasileiro.
1 Partimos para essa reflexão do seminal texto
de Roberto Schwarz, “Cultura e política
1964-1969”, parte do livro O pai de família e
outros estudos.
2 Uma nota importante: não se trata de usar
Gustavo Dahl como um bode expiatório. Pelo
contrário, mencionamos suas ideias aqui por
considerá-lo um dos mais importantes pensa-
dores de cinema de sua geração. As escolhas
que ele fez só podem ser compreendidas no
contexto de um grupo de cineastas que bus-
cava sobreviver e produzir no contexto difícil
de uma ditadura que perdurou no tempo. Se-
ria um anacronismo descabido fazer qualquer
julgamento moral ou pessoal sobre isso.
3 Este parágrafo parte de textos e reflexões fun-
damentais de Paulo Bio Toledo, Rafael Villas
Bôas e Iná Camargo Costa. As eventuais im-
propriedades, no entanto, se devem exclusiva-
mente aos autores.
4 Vale ressaltar que esse modelo é mais próxi-
mo do que era defendido por Gustavo Dahl
em seu texto já citado de 1977. Não seria in-
correto dizer que as políticas públicas de ci-
nema na era Lula, com seus erros e acertos,
devem muito às suas reflexões.

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