Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 158 (2020-09)

(Antfer) #1

SETEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 21


espiritual na prisão, após ter sido
vítima da repressão perpetrada pelo
ditador Sani Abacha, que ficou no
poder de 1993 até sua morte, em



  1. Muitos cristãos viram no retor-
    no de Obasanjo pelas urnas uma
    expressão da vontade divina. Seus
    sucessores, incluindo muçulmanos,
    adotaram a mesma estratégia, baju-
    lando o eleitorado evangélico.
    O contexto de democratização
    mostrou-se, portanto, propício ao de-
    senvolvimento do pentecostalismo
    no espaço público, bem como à inte-
    gração do novo cristianismo ao pró-
    prio Estado. A partir de então total-
    mente engajados na conquista do
    poder, líderes cristãos renascidos pas-
    saram a ser cortejados por políticos,
    aconselhar os detentores do poder e
    ocupar cargos no governo. A afiliação
    religiosa também se tornou um crité-
    rio determinante no recrutamento
    dentro do aparelho estatal (embora
    secular), em seus diversos níveis.
    Essa “pentecostalização da presi-
    dência”, para usar a expressão de
    Obadare, continuou sob os manda-
    tos presidenciais do muçulmano
    Umaru Musa Yar’Adua (2007-2010) –
    que, por exemplo, concedeu honras
    nacionais a pastores famosos – e do
    cristão Jonathan Goodluck (2010-
    2015), uma postura que pretendia
    responder ao medo de islamização
    do país. Esse medo, disseminado en-
    tre o conjunto dos cristãos nigeria-
    nos, decorre do sentimento de terem
    sido excluídos do poder durante as
    longas décadas após a independên-
    cia por militares muçulmanos origi-
    nários do norte do país e é alimenta-
    do pelos debates recorrentes em
    torno do estabelecimento da xaria
    em certos estados federados, pela
    adesão da Nigéria, em 1986, à Orga-
    nização para a Cooperação Islâmica
    e pelos frequentes episódios de vio-
    lência inter-religiosa. Outra razão,
    histórica, está ligada a um trauma
    presente na memória coletiva, o do
    Califado de Sokoto, que, no século
    XIX, constituiu um Estado próspero
    baseado na escravidão, em particu-
    lar das populações do centro da atual
    Nigéria, que eram então animistas e
    depois se tornaram cristãs.^6
    Não se pode falar, porém, em voto
    cristão, nem mesmo pentecostal. A
    cada eleição, as elites evangélicas di-
    videm seus apoios, que podem bene-
    ficiar inclusive um candidato muçul-
    mano. Durante a eleição de 2011,
    Muhammadu Buhari, muçulmano,
    associou-se a pastores famosos, mas
    a estratégia não trouxe os resultados
    esperados contra Jonathan Goo-
    dluck, ele próprio apoiado por outras
    figuras evangélicas. Mas, em 2015,
    Goodluck perdeu para Buhari, ape-
    sar do apoio que tinha entre grupos
    de interesse cristãos e líderes pente-


costais. Para fortalecer sua base polí-
tica, Buhari nomeou como vice-pre-
sidente Yemi Osinbanjo, pastor da
Igreja mais poderosa da Nigéria, a
Igreja Cristã Redimida de Deus, e
amigo do ex-governador (muçulma-
no) do estado de Lagos, o ainda mui-
to inf luente Bola Ahmed Adekunle
Tinubu. Procurador-geral, advogado
de direito empresarial e professor de
Direito, formado pela prestigiada
London School of Economics, o pedi-
gree universitário do vice-presidente
lembra que muitos pastores de igre-
jas poderosas também vêm do mun-
do acadêmico.^7
Para a Associação Cristã da Nigé-
ria, que reúne as igrejas das diferen-
tes correntes cristãs presentes no
país e atua como lobby político, dis-
tinguir “cristãos autênticos, verda-
deiramente renascidos, preenchidos
pelo Espírito Santo”, é um verdadeiro
desafio.^8 Essa retórica passa pela es-
tigmatização ou, para usar o vocabu-
lário dos renascidos, pela “demoniza-
ção” dos outros, sejam eles cristãos
seculares ou, pior, muçulmanos –
sem mencionar aqueles acusados de
praticar bruxaria.

Mas, assim como durante as elei-
ções presidenciais, as elites cristãs
nigerianas sabem compor alianças
amplas, incluindo, se necessário,
seus pares muçulmanos. A homosse-
xualidade é frequentemente empu-
nhada como um espantalho pelo po-
der político, e o reforço de sua
criminalização encontra o ruidoso
apoio da imprensa e de todas as elites
religiosas. Já as acusações levantadas
contra pastores por agressão sexual
ou tráfico de pessoas^9 têm bem me-
nos ressonância.

*Anouk Batard é jornalista e
pesquisadora.

1 “Les pasteurs les plus riches du Nigéria” [Os
pastores mais ricos da Nigéria], Forbes Afri-
que, 28 nov. 2015.
2 Ebenezer Obadare, Pentecostal republic: re-
ligion and the struggle for state power in Ni-
geria [República pentecostal: religião e luta
pelo poder estatal na Nigéria], Zed Books,
Londres, 2018.
3 Ebenezer Obadare, “White-collar fundamen-
talism: interrogating youth religiosity on Nige-
rian university campuses” [Fundamentalismo
de colarinho-branco: uma investigação da re-
ligiosidade dos jovens nos campi universitá-
rios nigerianos], The Journal of Modern Afri-
can Studies, Cambridge, v.45, n.4, 2007.

4 Cf. Ruth Marshall-Fratani, “Prospérité miracu-
leuse. Les pasteurs pentecôtistes et l’argent
de Dieu au Nigeria” [Prosperidade milagrosa.
Os pastores pentecostais e o dinheiro de
Deus na Nigéria], Politique Africaine, Paris,
v.82, n.2, 2001.
5 Cf. J. D. Y. Peel, “The Politicization of Religion
in Nigeria: Three Studies” [A politização da
religião na Nigéria: três estudos], Africa: Jour-
nal of the International African Institute, Cam-
bridge, v.66, n.4, 1996.
6 Cf. “Au Nigeria, le fantasme d’un ‘complot
peul’ pour islamiser le pays” [Na Nigéria, o
fantasma de um “complô fulâni” para islamizar
o país], Le Monde, 28 jun. 2019.
7 Cf. Afe Adogame, “How God became a Nige-
rian: Religious impulse and the unfolding of a
nation” [Como Deus se tornou nigeriano: im-
pulso religioso e o desdobramento de uma
nação], Journal of Contemporary African Stu-
dies, Londres, v.28, n.4, 2010.
8 Cf. Afe Adogame, “The politicization of reli-
gion and the religionization of politics in Ni-
geria” [A politização da religião e a religiosi-
dade da política na Nigéria]. In: C. J. Korieh e
G. U. Nwokeji (orgs.), Religion, history, and
politics in Nigeria [Religião, história e política
na Nigéria], Lanham, University Press of
America, 2005.
9 Cf. “Nigeria has #MeToo moment after popu-
lar pastor is accused of rape” [Nigéria tem
seu momento #MeToo após pastor famoso
ser acusado de estupro], Reuters, 1º jul.
2019, e Corentin Cohen e Precious Diagbo-
ya, “Le rôle des acteurs religieux dans la trai-
te d’êtres humains entre le Nigéria et l’Euro-
pe” [O papel dos atores religiosos no tráfico
humano entre a Nigéria e a Europa], Obser-
vatório Internacional da Religião, boletim
n.18, abr. 2018.

O primeiro “mártir”
Em 1820, Assaad Shidyaq, jovem
cristão maronita do Monte Líbano,
conheceu Jonas King, missionário
vindo dos Estados Unidos, e se con-
verteu ao protestantismo – algo mui-
to longe de ser seguro. O Oriente
Médio, sob domínio otomano, era en-
tão atravessado por prosélitos evan-
gélicos. Lá eles abriram escolas com
o aval mais ou menos implícito da
Sublime Porta, que tentava dividir as
várias igrejas cristãs. Em reação, o
patriarca maronita Youssef Hobaich
publicou um édito estipulando que
qualquer conversão a outra religião
acarretaria excomunhão automática.
Assaad foi banido de sua comunida-
de e detido por vários anos no mos-
teiro de Qannoubine, até sua morte,
em 1830. Segundo outra versão, as
autoridades religiosas maronitas te-
riam decidido emparedá-lo vivo em
uma caverna. Desnutrido, ele teria
enlouquecido antes de morrer. De
qualquer forma, Assaad Shidyaq é
reconhecido por muitas igrejas evan-
gélicas ocidentais como o primeiro
“mártir” protestante no Oriente Mé-
dio. Seu terrível destino forçou seu
irmão, Ahmad Faris Chidyaq, a aban-
donar o Líbano e viver em outros paí-
ses mediterrâneos (Egito, Malta, Tu-

nísia). Lá, ele seguiu uma carreira
prolífica como escritor, jornalista, tra-
dutor e acadêmico, antes de se esta-
belecer definitivamente em Istambul,
após uma estadia em Paris, onde fez
amizade com Victor Hugo.

Pastor libertado
Em outubro de 2018, um tribunal tur-
co julgou o pastor norte-americano
Andrew Brunson, processado por
“espionagem” e “apoio a organiza-
ções terroristas” – neste caso, o Par-
tido dos Trabalhadores do Curdistão
(PKK) e a rede de Fethullah Gülen. A
prisão do pregador da Igreja Evangé-
lica Presbiteriana, ocorrida em 2016
e depois convertida em prisão domi-
ciliar, desencadeou uma grave crise
diplomática entre a Turquia e os Es-
tados Unidos, com o governo Trump
chegando a impor sanções financei-
ras às exportações turcas. Embora
condenado a três anos e um mês de
prisão, Brunson foi imediatamente li-
bertado, considerando-se o tempo
que passou atrás das grades e seu
comportamento durante o julgamen-
to, no qual declarou: “Sou um homem
inocente. Amo Jesus, amo a Turquia”.
Recebido alguns dias depois na Ca-
sa Branca, ele fez uma oração pelo
presidente, dizendo em voz alta, com

uma mão apoiada no ombro de Do-
nald Trump e cabeça baixa: “Peço ao
Senhor que lhe dê sabedoria para
conduzir este país rumo ao Bem”.

Missão trágica
Novembro de 2018. John Chau, nor-
te-americano de 26 anos, desem-
barca na Ilha de Andaman, onde a
tribo Sentinela vive isolada do mun-
do. O missionário neopentecostal é
saudado com uma revoada de fle-
chas, uma das quais perfura sua Bí-
blia. Sem desanimar, ele volta alguns
dias depois, porém desta vez tem o
corpo fatalmente ferido. Diversas
igrejas evangélicas dos Estados Uni-
dos prestaram homenagem ao rapaz,
que imediatamente passou a ser
chamado de “mártir”. Para a organi-
zação All Nations, que prepara e trei-
na futuros missionários, “o privilégio
de compartilhar o Evangelho muitas
vezes tem um preço alto”. A institui-
ção, pela qual passou John Chau,
afirma “orar para que o sacrifício de
John dê frutos no tempo certo”. Pa-
trick Chau, pai da vítima, embora
também de cultura neopentecostal,
declarou que seu filho “era uma
criança inocente [...] que morreu por
uma consequência lógica de sua vi-
são extrema do cristianismo”.

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