Placar - Edição 1467 (2020-09)

(Antfer) #1

set | 2020 39


Enviado especial de
PLACAR a Nova York,
Lemyr Martins descreveu
como foram “os últimos
dias de Pelé jogador,
os primeiros dias do
cidadão do mundo”

Publicado em 11 de outubro de 1977

a última vez


pelo cosmos


O gol que Pelé fez, faltando um minuto para o final do primeiro tempo, foi o início da desvairada emoção
que viveria o estádio do Giants, em New Jersey. Logo depois, no vestiário do Santos, esse desvario se conver-
tia em obsessão. Esqueciam-se as táticas, esquecia-se a timidez, esquecia-se a falta de familiaridade com o
piso artificial. Só havia um desejo — o de um gol de Pelé contra o Cosmos. O Santos — era quase uma prece
de seus jogadores — não entraria para a história como o último time a sofrer um gol de Pelé.
Mas entrou — só que, no final, não haveria nenhum sentimento de humilhação. Pensando bem, foi no es-
tádio do Giants que se deu o reconhecimento mais festivo, mais ostensivo da glória que teve o clube em lan-
çar para o mundo o talento de Pelé. O jogo?
Foi assim: o Pelé gênio jogando pelo Cosmos, o Pelé coração sofrendo com o Santos. Foi o coroamento de
uma exaustiva semana de festas.
Meia hora antes da solenidade em que Édson Arantes do Nascimento iria receber, na sede da Organiza-
ção das Nações Unidas, um título destinado às grandes personalidades — o de cidadão do mundo —, havia
uma pessoa particularmente preocupada em meio à multidão que aguardava a chegada de Pelé. Era Cecil
Redman, um mulato alto e forte, vice-diretor do serviço de segurança da ONU. “Esse é um tipo de segurança
a que eu e meus colegas não estamos habituados”, diz. Afinal, é a visita de um rei — um Rei do Mundo.
Houve muita confusão nos normalmente calmos, pesadamente sisudos corredores e salões da ONU. En-
tre empurrões, apelos, gritos e sussurros, foi difícil seguir o roteiro programado — tanto que metade do pro-
tocolo deixou de ser cumprida. Quando os homens tentavam — porque a rigor não conseguiam — proteger
Pelé, foram obrigados a encostar o Rei num canto do hall do elevador.
Depois, não seria apenas um banquete. Os discursos de Mauro Ramos, Hilderaldo Bellini e Carlos Alber-
to Torres — os capitães das três Copas vencidas pelo Brasil — tinham o inevitável cheiro de saudade das
grandes conquistas. Conquistas que, insinuaram todos, eram devidas em maior parte a Pelé.
Viriam mais emoções quando o cidadão do
mundo voltou a falar de suas origens. “Sei que
este momento vai ser como foi toda a minha
carreira: fácil de começar, mas não sei como vai
t er m i n a r”.
No final — depois de confessar que tomara
calmante para evitar uma emoção excessiva —
pediu ao pai, Dondinho, e à mãe, dona Celeste,
que fossem até ele. Iria apresentar, disse, os cul-
pados por tudo o que ele é; ou, no mínimo, por
tudo o que as pessoas dizem que ele é. Nem ter-
minou a frase e vieram as lágrimas. As suas, as
dos pais. As de uns tantos amigos. O imenso
salão ficou silencioso. Foi o fim de uma era que
ficará marcada como a maior vitória de um jo-
gador de futebol: trazer dos campos, dos dri-
bles, dos gols, a conquista do mundo. ƒ

Disputando uma bola com o velho parceiro Clodoaldo e a
ACERvo PLACARcharge de Laerte, ironizando as muitas despedidas do Rei

LAERtE/ACERvo PLACAR

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