Claude Lévi-Strauss - As estruturas elementares do parentesco (1982, Editora Vozes) - libgen.lc

(Flamarion) #1

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reveste da aparência interessada de um reino hierarquicamente super-
posto a outro, sendo irredutivel a este, mas tem antes a aparência de
uma repetição sintética, permitida pela emergência de certas estruturas
cerebrais, dependentes da natureza, de mecanismos já montados mas só
ilustrados pela vida animal em forma desconexa e que concede em or-
dem espalhada.

Entre os desenvolvimentos a que este livro deu lugar, o mais ines-
perado para mim foi sem dúvida aquele que acarretou a distinção, que
se tornou quase clássica na Inglaterra, entre as noções de "casamento
prescritivo" e "casamento preferencial", Tenho certo embaraço em dis-
cuti-la, tão grande é a divida de gratidão que contraí com o autor dela,
Rodney Needham, que soube, com muita penetração e vigor, tornar-se
meu intérprete (e às vezes também meu crítico) junto do público an-
glo-saxão em um livro, Structure and Sentiment (Chicago 1962), com o
qual preferiria não exprimir um desacordo, mesmo se, como é o caso,
este se refira a um problema limitado. Contudo, a solução proposta por
Needham acarreta uma alteração tão completa do ponto de vista em
que me tinha colocado que parece indispensável retomar aqui alguns
temas que, por deferência para com meus colegas britãnicos, tinha pre-
ferido apresentar primeiramente em sua lingua e em seu pais, porque
foram eles que me ofereceram a ocasião de fazê-lo, ao me confiarem a
Huxley Memorial Lecture para o ano de 1965.
Desde muito se sabe, e as simulações realizadas em computadores
empreendidas por Kumdstadter e sua equipe' acabaram de demonstrá-lo,
que as sociedades que preconizam o casamento entre certos tipos de
parentes não conseguem submeter-se à norma senão em um pequeno
número de casos. As taxas de fecundidade e de reprodução, o equilíbrio
demográfiCO dos sexos, a pirâmide das idades nunca oferecem a bela
harmonia e a regularidade exigida para que, no grau prescrito, cada
individuo esteja seguro de encontrar no momento do casamento um côn-
juge apropriado, inesmo se a nomenclatura do parentesco é suficiente-
mente extensa para confundir graus do mesmo tipo, mas desigualmente
afastados, o que freqüentemente acontece a ponto da noção de descen-
dência comum tornar-se totalmente teórica. Daí a idéia de dar a estes
sistemas a qualificação de "preferenciais". Acabamos de ver que esta
qualificação traduz a realidade.
Mas existem sistemas que confundem vários graus em categorias ma-
trimoniais prescritas, nas quais não é mesmo inconcebível que figurem
pessoas que não são parentes. É o caso das sociedades australianas de
tipo clássico, e de outras, mais freqüentemente encontradas no sudeste
da Ásia, onde o casamento se trava entre grupos que são chamados, e
eles próprios assim se chamam, "tomadores" ou "doadores" de mulheres.
A regra é que um grupo qualquer só pode receber mulheres de seus
"doadores", dando-as a seus "tomadores". Como o número desses grupos
parece sempre multo elevado, existe uma certa liberdade de escolha para
qualquer indivíduo, e nada obriga, de uma geração à outra, e mesmo
para os casamentos contraidos por vários homens da mesma geração,
a recorrer sempre ao mesmo "doador". De modo que as mulheres ca·


  1. P. Kundstadler, R. Bulúer, F. F. Slephan, Ch. F. Westoff, "Demography and
    Preferential Marriage Patterns", American Journal 01 Physical Anthropology, 1963.


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