Claude Lévi-Strauss - As estruturas elementares do parentesco (1982, Editora Vozes) - libgen.lc

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Fêng encontra a prova de que as coisas devem realmente ter ocorrido
desta maneira na comparação entre a nomenclatura antiga do Ehr ya
e a nomenclatura, mais recente, do I Li. É mais dificil estabelecer a cor·
respondência entre a nomenclatura do Ehr Ya e o sistema do luto, porque
esta nomenclatura é "inconseqüente e mal diferenciada". O I Li "repre-
senta um sistema mais tardio, porém já racionalizado e transformado
para concordar com o sistema do luto". A luz das observações anteriores,
o caráter artificial do sistema de parentesco chinês fica esclarecido. O
sistema analítico de parentesco é realmente função de um sistema quan·
titativo do luto. Qualquer que tenha sido o sistema de parentesco arcaico,
aquele que temos diante de nós, a partir do Ehr Ya e do I Li, representa
uma elaboração metódica e o resultado de um esforço de racionalização.
Esta discussão permite dissipar uma confusão de Granet. É a teoria
do luto que explica a rigorosa estratificação em gerações, caracteris·
tica do sistema de parentesco. Ora, Granet considera que o sistema do
luto permite ver através dele um sistema de parentesco arcaico, enquanto
que o sistema de parentesco, tal como se encontra no Ehr Ya e no I Li,
apareceu·nos como resultado do sistema do luto, e não como origem
deste. Ao adotar a concepção inversa, Granet transpôs para o sistema
de parentesco hipotético do período arcaico um traço - a estratificação
em gerações - que na realidade depende do sistema de luto e só pode
ser compreendido por meio deste, um ano para o pai, nove meses para
o avô, cinco meses para o bisavô, etc. Na verdade, é preciso esperar o
Código dos T'ang (aproximadamente no ano 600 de nossa era) para en·
contrar artigos que proibem categoricamente o casamento entre parentes
de gerações diferentes." Isto aconteceu pois porque a proibição não era
tão rigorosamente aplicada. Mas impôs·se com força crescente à medida
que os ritos funerários se desenvolviam e vulgarizavam, até chegarem
ao apogeu na época dos T'ang." Ao projetar o principio do paralelismo
no \>Criodo arcaico, Granet foi vitima de uma miragem histórica. A
estratificação em gerações não deve ser colocada aqUém do período de
ConfúCio, mas além. Não antes, mas depois.
Já insistimos no fato de um sistema do tipo Kariera, tal como Granet
imaginou para explicar as origens da famllia chinesa, não ser de modo
algum, segundo acreditou, o mais simples que possa existir ou conceber·
se. Com efeito, é possível explicar tudo quanto no Ehr Ya aparece como
sobrevivência do casamento entre primos cruzados pela hipótese, fre-
qüentemente formulada por Granet, das comunidades chinesas primitivas
serem divididas em duas metades exogãinicas, o que não constitui, de
maneira alguma (ao contrário do que Granet acreditou) um sistema
Kariera. Isto não quer dizer que estejamos de acordo com Hsu," quando,
por excessivo farisaismo intelectual, este último autor trata de "pura
hipótese" o testemunho de Radcliffe·Brown. O sociólogo inglês considera
muito provável a existência antiga do casamento entre primos cruzados
bilaterais "ligando dois clãs de uma mesma aldeia, ou duas aldeias per·


  1. Fêng, p. 165. M. J. Escarra assinala·nos contudo que textos legislativos que
    datam da época dos Han já contêm esta proibição.

  2. Idem, p. 181.

  3. F. Lan-Kwang Hsu, Conceming the Question of Matrimonial Categories and
    Kinship Relationship in Ancient China. Tien Hsi Monthly. voI. lI, nn. 3-4, 1940-1941,
    p. 357. n. 22.


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