Claude Lévi-Strauss - As estruturas elementares do parentesco (1982, Editora Vozes) - libgen.lc

(Flamarion) #1

Obtive minha mulher transferindo os bois, e a mulher não me foi entre-
gue a não ser porque sua família contava por sua vez, graças aos bois,
receber uma nova esposa para um membro do grupo Esta última - a
grande mukonwana - é portanto, de certa maneira, a causa final de
toda a operação
Tudo se passa como se, em lugar de estar colocada no
final do processo, estivesse situada na origem. Tudo se passa como se
eu tivesse trocado a grande mukonwana pela minha esposa Na verdade,
troquei-a de fato, porque ela é meus bois, isto é, minha carne, e pelo
menos simbolicamente pertence ao meu clã. Por isso, embora a legali-
dade abstrata me permita reivindicá-la como um bem, a moral me proibe,
pelo mesmo motivo que uma parenta, de me aproximar dela. e as relações
adulterinas com ela são consideradas incestuosas.
Este caráter incestuoso da participação no gado é estabelecido, de
maneira mais clara possível, pelas seguintes observações de Hoernlé, for-
muladas sem referência ao problema que acabamos de discutir: "Entre
os Pondo, os Zulu e os Herero, os membros do grupo tribal não podem
beber leite senão na companhia de seus parentes clânicos
Entre os Pondo
e os Zulu, beber leite com um ou vários membros de outro clã equivale
ao estabelecimento de um pacto de fraternidade pelo sangue com o clã,
tendo, como conseqüência, a impossibilidade de contrair matrimônio com
uma mulher do clã" O mesmo autor acrescenta que, em várias tribos
Banto do sudeste, uma mulher, imediatamente depois de seu casamento,
não deve beber leite proveniente do gadO de seu marido, do contrário
causaria um; mal não só a si própria mas também à família do marido.
Somente depois dos antepassados do marido terem manifestado a acei-
tação do novo membro do kraal é que ela pode, com toda segurança,
receber sua pàrte. No intervalo bebe o leite de uma vaca que trouxe, e
que forma um elemento essencial de sua bagagem de casada. 11 Junod
indica que a mulher cedida em troca do gado e a que foi comprada por
meio do mesmo gado são chamadas "gêmeas". 2~ Estas observações são
capitais porque ilustram, sem o menor eqUívoco, esta arbitragem entre o
parentesco e a aliança que a proibição do incesto constitui. No começo
do artigo do qual acabamos de citar uma passagem, Hoernlé mostra
que existe, no pensamento indigena, uma identidade substancial entre o
clã e seu gado. Beber o leite é participar da natureza do grupo, seria
portanto para a mulher colocar-se de uma só vez na situação anormal
da grande mukonwana e tirar partido da ambigUidade das posições da
esposa - que é trocada pelo gado, mas é trocada opondo-se a isso (lem-
bremos as contendas rituais da recusa do lobola) - e da irmã que é o
gado, porque o próprio gado é o grupo. Vemos assim o lobola adquirir
.'1'
um significado novo, mais concreto, e provavelmente também mais pro-
fundo, a saber, significado não mais unicamente simbólico, porém real.
Suponhamos, com efeito, o lobola prosseguindo seu circuito através dos
grupos. Haverá necessariamente um momento em que o gado voltará, se
é possivel dizer, ao curral, em que, de compra em compra, e de troca
em troca, o gado que terei transferido para obter uma mulher voltará
ao meu grupo para fazer sair dele uma moça_ Nem mesmo está ex-



  1. Hoernlé, loco cito

  2. Ibid., p. 482.

  3. Junod, op. cit., p. 66.


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