Claude Lévi-Strauss - As estruturas elementares do parentesco (1982, Editora Vozes) - libgen.lc

(Flamarion) #1

está em jogo. Não são apenas as mulheres cuja distribuição o grupo
controla, mas também todo um conjunto de valores, dos quais o mais
facilmente observável é o alimento. Ora, o alimento não é somente um
outro bem, e sem dúvida o mais essenci,al. Entre as mulheres e o ali-
mento existe um sistema inteiro de relações, reais ou simbólicas, cuja
naturez!, só pOde ser extraida progressivamente, mas cuja apreensão, mes-
mO superficial, basta para fundar esta aproximação: "A mulher alimenta
os porcos, os parentes tomam-lhes e as aldeias os trocam pelas mulhe-
res", observa em certo lugar Thumwald.· Esta continuidade só é possivel
porque não se sai do domínio da especulação. O pensamento primitivo
é unânime em proclamar que "o alimento é coisa para distribuir"', mas
é porque o indígena, no curso das estações, vive de acordo com o duplo
ritmo de abundância e de fome, passando através de toda a escala das
sensações que vai da inanição à sacledade. De um regime a outro, dos
"meses de fome" aos "meses de comezaina" a mudança é brutal e com-
pleta.· Estas observações não são verdadeiras somente para a Arrica. En-
tre os Svanneta do Cáucaso, "se alguma faml1ia se decide a matar um
boi, uma vaca ou a imolar algumas dezenas de ovelhas, os vizinhos acor-
rem de todos os lados... Assim fartos, os svanetas jejuarão semanas
inteiras, contentando-se em engolir um pouco de farinha díluída em água.
Depois vem um novo festim ... " f Nessa incerteza radical, que poderia
ser ilustrada com exemplos tomados no mundo inteiro, é normal que
o pensamento primitivo não possa considerar o alimento "como uma
coisa que o mesmo indivíduo produz, possui e consome. Durante a in-
fância, o alimento vem dos mais velhos e durante todo o resto da vida
é compartilhado com os contemporâneos".· Esta partilha efetua-se de
acordo com regras que é Interessante considerar porque refletem, e sem
dúvida também determinam com exatidão, a estrutura do grupo familiar
e social.
O caçador Esquimó da baia de Hudson que abate uma -morsa re-
cebe os dentes e um membro anterior. O que ajudou o primeiro tem
direito ao outro membro anterior, o pescoço e a cabeça são dados ao
seguinte, o ventre ao terceiro e cada um dos dois últimos recebe um
dos membros posteriores. Mas, em períOdO de escassez, todos os direi·
tos de distribuição ficam suspensos, e a presa é considerada como bem
comum da comunidade inteira. ~
Em outra parte deste trabalho descreveremos a organização matri-
monial de certas populações da Birmânia. Basta que o leitor se trans-
porte para elas" e compreenderá a que ponto as trocas matrimoniais
e as trocas econômicas formam no espirito do indigena parte integrante
de um sistema fundamental de reciprocidade. Os métodos de dístribuição
da carne em uso nessa região do mundo não revelam menor engenho-
sidade que os da distribuição das mulheres. Os primeiros foram Objeto



  1. R. Thurnwald, Pigs anel Currency in Buin. Oceanta, vol. 5, 1934·1935.

  2. A. Richards. Land, Labour and Diet in Northern Rhodesia, Londres 1939, p. 197.

  3. A. Richards, Hunger and Work in a Savage Tribe, Londres 1932, p. 165. E. E.
    Evans·Pritchard, The Nuer, Oxford 1940, p. 83.

  4. M. Kowalevsky, Tableau des origines et de Z'évolution de la famille et de la
    proprlété. Stockholm 1890. p. 53.

  5. A. Richards, Land, Labour .. " p. 200.

  6. F. Boas, The Eskimo of Baftin's Land and Hudson Bay. Bulletln 0/ the American
    Museum 01 Natural History, vaI. 15, 1901, parte l, p. 116 e 372.

  7. Segunda parte, caps. XV e XVI.


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