Claude Lévi-Strauss - As estruturas elementares do parentesco (1982, Editora Vozes) - libgen.lc

(Flamarion) #1

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onde a satisfação das necessidades econômicas repousa inteiramente so-
bre a sociedade conjugal e s·obre a divisão do trabalho entre os sexos.
}~'ão somente o homeril- e a mulher não têm a mesma especialização
técnica, dependendo portanto um do outro para a fabricação dos objetos
necessários às tarefas cotidianas, mas dedicam-se à produção de tipos
diferentes de alimentos. Uma alimentação completa, e sobretudo regular,
depende por conseguinte desta verdadeira "cooperativa de produção" que
constitui uma família. "Quanto mais mulheres há, mais há o que comer".
dizem os pigmeus, que consideram "as mulheres e as crianças como a
parte mais preciosa do ativo do grupo familiar". ~~ Igualmente as mulhe-
res Hotentote. durante a cerimônia do casamento, celebram em coro o
noivo e os homens que, como ele, "procuram mulher, embora hoje te-
nham o suficiente para comer". "1
Sobretudo nos níveis mais primitivos, onde o rigor do meio geográ-
fico e o estado rudimentar das técnicas deixam ao acaso tanto a caça
e a jardinagem quanto a apanha e a colheita, a existência seria quase
impossível para um indivíduo abandonado a si próprio. Uma das impres-
sões mais profundas que guardamos de nossas primeiras experiências no
terreno é a do espetáculo, numa aldeia indígena do Brasil Central, de
um jovem acocorado horas inteiras no canto de uma cabana, sombrio,
mal cuidado, terrivelmente magro e, ao que parecia, no estado de mais
completa abjeção. Observamo-lo vários dias seguidamente. Raramente saia,
exceto para caçar, solitário, e quando em redor das fogueiras começavam
as refeições familiares teria quase sempre jejuado se uma vez ou outra
uma parente não colocasse a seu lado um pouco de alimento, que ele
absorvia em silêncio. Quando, intrigado com este singular destino, per-
guntamos finalmente quem era este personagem, a quem atribuíamos al-
guma grave doença, responderam-nos, rindo de nossas suposições: "é um
solteiro". Tal era com efeito a única razão dessa aparente maldição. A
mesma experiência renovou-se freqüentemente desde então. O solteiro mi-
serável, privada de alimento nos dias em que, depois de infelizes expe-
dições de caça ou de pesca, o menu limita-se aos frutos da colbeita e da
apanha, às vezes da jardinagem, femininos, é um espetáculo característico
da sociedade indígena. E não é somente a vítima direta que fica colo·
cada em uma situação dificilmente suportável. Os parentes ou amigos
de que depende, em casos semelhantes, para sua subsistência, suportam
com mau humor sua muda ansiedade, porque cada família retira dos
esforços conjugados do marido e da mulher freqüentemente o mínimo
necessário para não morrer de fome. .Nª-º __ LILQrtª_º-tQ_ ,gxage~ado dizer que
nessas soc!eçiades -o casamento apresenta uma importância-vífal pa.ra--:::-ca-:-~
da individuo. Porque cada indivíduo está duplamente interessado nãosQ",
.~ente ___ em __ encontrar para si um cônjuge, mas também em prevenir a
ocorrência, em seu grupo, dessas duas calamidades (Ja sociedade -pri.mi~
tiva, a saber. __ o _ solteiro e o órfão. -,
Pedimos desculpas por acumular aqui citações_ Mas é importante ilus-
trar, quando não a generalidade dessas atitudes, que ninguém sem dú-
vida contestará, pelo menos o tom de veemência e de convicção com o
qual o pensamento primitivo as exprime por toda a parte: UEntre esses


  1. P. Schebesta, Among Congo Pygmies, Londres 1933, p. 128; e Revisiting my
    Pygmy Hosts, Londres 1936, p. 138-139.

  2. L Schapera, The Khoisan People o/ South A/rica, Londres 1930, p. 247_


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