Claude Lévi-Strauss - As estruturas elementares do parentesco (1982, Editora Vozes) - libgen.lc

(Flamarion) #1

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tenham a idéia da propriedade individual, o que cada um possui é tão
banal e fácil de obter que todos emprestam e tomam emprestado, sem
se preocuparem demasiado em restituir". 18 Os Yakut recusavam-se a crer
que em algum lugar do mundo se pudesse morrer de fome, quando é
tão fácil ir participar da refeição de um vizinho." Os requintes da di·
visão ou da distribuição aparecem, portanto, com a urgência ou a au·
sência da necessidade.
Mas ainda aqui estamos em presença de um modelo geral. No do·
minio tão característico das prestações alimentares, de que os banquetes,
os chás e as ceias comprovam o vigor moderno, a própria linguagem,
que diz "dar uma recepção", mostra que entre nós, tal como no Alasca
ou na Oceânia, "receber" é dar. Este caráter de reciprocidade não é o
único que autoriza a aproximar as refeições e seu ritual das instituições
primitivas que evocamos. UNas relações econômicas e sociais a expressão
!ai te kai, I'preparar o alimento". ouve-se freqüentemente e se refere ao
ato preliminar da abertura da relação, pOis um cesto de alimento cons·
titui o meio habitual de introduzir uma petição, de pagar multa por
um dano causado ou de cumprir uma obrigação. Nas instruções indi·
genas que se referem à maneira de agir em um grande número de si·
tuações. as palavras "vai a tua casa, prepara alimentos" aparecem fre-
qüentemente em primeiro lugar". IR "Oferece-se" um jantar a uma pessoa
que se deseja homenagear, e este gênero de convite constitui o meio
mais freqüentemente usado para "retribuir" uma delicadeza. Quanto mais
o aspecto social domina o aspecto estritamente alimentar mais se vê
estilizar·se o tipo de alimento oferecido e sua apresentação. O serviço
de porcelana fina, a prataria, as toalhas bordadas, preciosamente guarda·
das nos armários e nos guarda·louças familiares são um notável equi·
valente das tigelas e colheres cerimoniais do Alasca que, em ocasiões aná-
logas, saem das arcas pintadas e decoradas com brazões. As atitudes em
face do alimento, sobretudo, são reveladoras. Para nós também, parece
que aquilo que se pode chamar, sem trocadilho, os "rich foodu, corres-
pondem a uma outra função, diferente da simples satisfação das neces·
sidades fisiOlógicas. Quando se "dá" um jantar, não se serve o menu
cotidiano, e a literatura evocou copiosamente o salmão com maionese, o
rodovalho com molho mousseline, as geléias de loie gras, todo este foI·
clore dos banquetes. Ainda mais, se as obrigações alimentares exigem
certos alimentos definidos pela tradição, basta apenas seu aparecimento
para uma retribuição significativa, o consumo em forma compartilhada.
Uma garrafa de vinho velho, um licor raro, um loie gras, convidam o
outro a verrumar uma surda reivindicação na consciência do proprietá-
rio. São iguarias que ninguém compraria e consumiria sozinho, sem um
vago sentimento de culpabilidade. O grupo, com efeito, julga com sino
guIar dureza aquele que "bebe sozinho". Por ocasião das trocas e ce-
rimoniais polinésios é prescrito que, na medida do possível, os bens não
sejam trocados no interior do grupo dos parentes próximos paternos,
mas se estendam a outros grupos e a outras aldeias. Faltar a este dever
chama-se sori tana, jjcomer de seu próprio ceston• E nas danças da al-


  1. C. F. P. von Martius, Beitrage 2ur Ethnographie, etc., Leipzig 1867.

  2. W. G. Sumner, The Yakuts. Abridged Iram the Russian af Sierashevski, Journal
    01 the Royal Anthropological Institute, voI. 31, 1901, p. 69.

  3. R. Firth, Primitive Polynesian Economics ... , p. 372.


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