Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 159 (2020-10)

(Antfer) #1

OUTUBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 15


deliberado traços de sua conspiração,
“a fim de que, quando o dia chegar,
ninguém pense que se trata de uma
conspiração”,^5 um engenhoso exercí-
cio de acrobacia intelectual realizado
sem rede de proteção por Michael An-
ton, um antigo alto membro da admi-
nistração Trump, conhecido em es-
pecial por ter, em 2016, comparado a
eleição de seu amigo bilionário a uma
rebelião de passageiros em um avião
desviado por terroristas.
A história do “conluio” com Vladi-
mir Putin seguiu uma trajetória aná-
loga. De 2017 a 2019, a hipótese de
uma lealdade de Trump ao regime
russo era tão aceita que não deixava,
por assim dizer, nenhum espaço para
qualquer outro pensamento político.
Infelizmente, as provas finalmente
entregues para embasar essa teoria
não se revelaram tão substanciais
quanto o esperado, o que permitiu à
base eleitoral do presidente norte-a-
mericano construir sua própria reali-
dade, na qual o inquérito do procura-
dor Robert Muller a propósito das
ligações entre Trump e a Rússia se
transformou em tentativa de golpe de
Estado, perpetrado, é claro, pela mí-
dia e pelo “Estado profundo”.


“COVARDE-CHEFE”
A epidemia forçou democratas e re-
publicanos a suprimir o caráter pú-
blico de suas respectivas convenções,
que constituiriam, como regra, o
apogeu desse ano de campanha elei-
toral, substituindo-o por um show te-
levisivo difícil de aguentar – quatro
noites de monólogos produzidos de
forma medíocre, executados por ce-
lebridades de cada partido. Tudo pa-
recia opor dois espetáculos: os repu-
blicanos vociferando e rugindo, ao
passo que os democratas se concen-
travam na diversidade étnica e nas
supostas virtudes morais de seus lí-
deres. De maneira mais geral, no en-
tanto, essas duas demonstrações de
força verbal em tempos de Covid
apresentaram muitas semelhanças.
Nos dois casos, tratou-se de suscitar
um ref lexo de pânico, incentivando o
espectador a pensar o pior do campo
adversário e a esperar que um sem-
blante de normalidade só poderia
voltar se seu próprio candidato ven-
cesse em novembro.
Para os democratas, o componen-
te “pânico” do programa jorrava que
nem água. Bastou-lhes repetir o que
as mídias dominantes – fora a Fox Ne-
ws – vêm ecoando há quatro anos: que
Trump é uma ameaça para nossas
instituições; que ele aviva o fanatismo
de sua base; que falhou de modo la-
mentável em sua resposta à epidemia;
que é de uma incompetência f lagran-
te; que usa de diferentes meios para
desacreditar todo o processo eleitoral
etc. Esses atos de acusação ocorrem


para “encerrar a temporada de obscu-
ridade nos Estados Unidos”.
“Todas as eleições são importan-
tes”, lembrou-nos Biden, nesse tom
desajeitado que, conforme alguns di-
zem, tem seu charme. “Mas sabemos
em nosso coração que esta é ainda
mais carregada de consequências.”
Ela “determinará com o que a Améri-
ca se parecerá por muito tempo. Nos-
sa identidade está em jogo, a compai-
xão está em jogo, a decência, a
ciência, a democracia, tudo isso está
em jogo”. Em seguida, o ex-vice-pre-
sidente consentiu brevemente em
trabalhar com fatos – diante da epi-
demia, os Estados Unidos registra-
ram os “piores resultados de todas as
nações neste planeta” – antes de vol-
tar ao mundo espiritual, onde os ini-
migos abstratos se enfrentam em ba-
talhas memoráveis: “Que a história
possa decidir que o fim do capítulo
da obscuridade norte-americana te-
nha começado esta noite, com o
amor, a esperança e a luz se aliando
na batalha pela alma da nação”.
Há décadas, as convenções demo-
cratas tinham o costume de se reunir
em torno de um grande tema que
contribuía para a federação: o parti-
do da classe popular, aquele que zela-
va por seus interesses e garantia que
as regras impostas aos reles mortais
também valessem para os poderosos.
Embora essa mensagem tenha cor-
respondido cada vez menos à realida-
de ao longo do tempo, a imagem his-
tórica do partido impunha utilizá-la
de novo e de novo.

Mas não desta vez. Evocaram al-
guns sofrimentos inf ligidos ao povo
pela crise econômica, decorrente da
“pandemia de Trump”, mas sem insis-
tir muito nisso. Para onde tinham ido
os democratas que outrora denuncia-
vam com fervor as desigualdades?
Onde a ideia de justiça social fora se
esconder nos tempos de Covid? Bem,
em parte, na Convenção Republicana,
que ocorreu uma semana depois. O
tema predileto dos democratas fez
uma surpreendente aparição ali des-
de a primeira noite. Dando seguimen-
to à profissão de fé dos conservadores,
chamaram ao palco o jovem Robert
Kirk, fundador de um grupo de estu-
dantes em guerra contra os ensina-
mentos “esquerdistas”, que convocou
o público a nada menos que a luta de
classes. “Durante décadas”, exclamou
ele, “as classes dirigentes dos dois

partidos venderam nosso futuro. À
China. A multinacionais sem rosto. A
lobistas ávidos. Fizeram-no com a in-
tenção de preservar seu próprio po-
der. E para enriquecer. Manipulando
o sistema de modo a destruir os bra-
vos patriotas da classe popular que se
esforçam para construir uma família
e levar uma vida decente.” O orador
seguinte tomou por alvo os sindicatos
dos professores.
O pânico se tornou a grande ques-
tão cultural de 2020, uma moda ba-
rulhenta e sexy que cada um reivin-
dicou para seu lado. Mas, enquanto
os democratas se colocaram sobria-
mente em guarda em relação ao ra-
cismo sistêmico e aos perigos aos
quais Trump expôs as instituições
democráticas, eles acabaram sendo
superados de longe no que se refere
ao terror. Os republicanos são os vir-
tuosos do medo, os grandes mestres
do mundo transformado em pesade-
lo. Recoloquem os democratas no co-
mando, dizem eles, e verão não ape-
nas o fim da democracia, mas a morte
da civilização propriamente dita. Tu-
multos se espalharão por todos os la-
dos, piores do que aqueles aplicados
nos protestos contra a violência poli-
cial durante o verão. As propriedades
privadas serão incendiadas, as está-
tuas derrubadas, os subúrbios resi-
denciais brancos aniquilados. E a
grande mídia não dirá nada, é claro,
pois está hipnotizada pelas sereias do
esquerdismo e da anarquia...
Bem como James Jordan, o repre-
sentante de Ohio no Congresso: “Ve-
jam o que está acontecendo nas ci-
dades norte-americanas: crime,
violência, lei da loucura. [...] Os de-
mocratas não vão deixá-los ir ao tra-
balho, mas permitirão que vocês fa-
çam protestos”.
Bem como Mark e Patricia Mc-
Closkey, um casal abastado de St.
Louis, no Missouri, que ficou famoso
por ter apontado armas de fogo aos
manifestantes pacíficos do Black Li-
ves Matter: “Eles querem abolir com-
pletamente os subúrbios”; “sua famí-
lia não estará segura na América dos
democratas radicais”; “a loucura, in-
citada por seus aliados nas mídias,
vai tentar destruí-los”.

UMA LUTA DE CLASSES SINGULAR
Bem como Kimberly Guifoyle, ex-
-apresentadora da Fox News recruta-
da pela Trump Organization, que li-
teralmente urrou seu discurso como
se estivesse sem microfone para um
estádio com 50 mil apoiadores, en-
quanto falava de um cômodo vazio
de um escritório em Washington:
“Esta eleição é um combate para a al-
ma da América”; “eles querem des-
truir este país e tudo aquilo pelo qual
lutamos e que apreciamos”; “Améri-
ca! É ela quem está na balança”.

com cada vez mais facilidade, visto
que estão, em sua maioria, em confor-
midade com a realidade.

Tammy Duckworth, senadora de
Illinois, qualificou Trump como um
“covarde-chefe” por ter traído os sol-
dados norte-americanos por meio de
seus acordos com o Kremlin. A canto-
ra pop Billie Eilish anunciou que o
presidente estava “destruindo nosso
país e tudo o que amamos”. O gover-
nador do estado de Nova York, An-
drew Cuomo, vestindo seu habitual
terno de competência administrati-
va,^6 sugeriu que o próprio trumpismo
era uma espécie de vírus. Porém, o
mais eficaz nesse exercício, e de lon-
ge, foi, sem dúvida, o ex-presidente
Barack Obama, que sintetizou os pe-
rigos do trumpismo de maneira ao
mesmo tempo sóbria e professoral.
Afirmando ter esperado que o mag-
nata do setor imobiliário se elevaria à
altura de sua função uma vez no pos-
to, precisou: “Mas ele nunca fez nada
disso. [...] Ele não mostrou nenhum
interesse por seu trabalho, nenhum
interesse em encontrar um terreno
de entendimento, nenhum interesse
em utilizar o imenso poder de seu ga-
binete para ajudar a quem quer que
seja além de si próprio e de seus ami-
gos, nenhum interesse em tratar a
presidência como algo diferente de
um reality show entre outros, que ele
explora para atrair a atenção de que
precisa”. Imputou em seguida a seu
sucessor a responsabilidade comple-
ta pelas mortes por Covid, bem como
pela destruição de “nossa orgulhosa
reputação ao redor do mundo”, seja lá
qual esta possa ser. Reagindo aos re-
ceios de fraude eleitoral expressos
pelos republicanos, o ex-presidente
se arriscou em um duplo salto de cos-
tas ao declarar: “É assim que periclita
a democracia. Até não ser mais de-
mocracia nenhuma”.
Outro tema importante da conven-
ção democrata: por que Biden é nosso
melhor amigo. É “um irmão”, assegu-
rou Obama, um ser “dotado de empa-
tia”, “honesto” e “decente”, certificou
Bernie Sanders. Não percamos tempo
debatendo a interminável carreira po-
lítica de Biden, em parte porque seu
histórico em matéria de comércio e de
polícia chocaria seus eleitores, em
parte porque, em tempos de Covid, to-
do conf lito deve se resumir a um con-
fronto entre o bem e o mal – ou, para-
fraseando Biden, a uma busca de luz

Para onde tinham
ido os democratas
que outrora denuncia-
vam com fervor
as desigualdades?

Os republicanos são
os virtuosos do medo,
os grandes mestres do
mundo transformado
em pesadelo

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