Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 159 (2020-10)

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28 Le Monde Diplomatique Brasil^ OUTUBRO 2020


NO PAÍS DO CEDRO, DO COMUNITARISMO, DO CLIENTELISMO, DO NEGÓCIO SEM LIMITES E DA DESIGUALDADE


O Líbano, há


dois séculos


em busca de


uma nação


Ao instar fortemente a classe política libanesa a
providenciar um novo governo capaz de realizar reformas,
o presidente francês, Emmanuel Macron, perpetua a
tradição de ingerência das grandes potências nos assuntos
internos do Líbano. Mas nem assim as elites políticas locais
conseguem construir um Estado sólido, capaz de responder
aos desafios econômicos e sociais do país

POR GEORGE CORM*

D


esde o século XIX, o Líbano se-
gue enfrentando o intervencio-
nismo de grandes potências,
que lhe conferem o trágico es-
tatuto de “espaço-tampão”, em vez da
soberania formal. Em 1833, o país foi
ocupado pelas tropas de Ibrahim
Pasha, filho do poderoso Moham-
med Ali (ou Mehmet Ali), vice-rei do
Egito, adversário declarado do sultão
otomano, após ter sido seu vassalo.
Mas os britânicos não entenderam
dessa forma e acabaram obrigando a
França, da qual o soberano egípcio
era admirador e aliado, a pressioná-
-lo para que seu filho retirasse suas
tropas das montanhas libanesas em


  1. O acordo das cinco potências
    coloniais (França, Itália, Prússia,
    Áustria, Inglaterra) considerava en-
    tão que as ambições de Mohammed
    Ali de derrubar a monarquia otoma-
    na e substituí-la não eram aceitáveis.
    Foi nesse contexto de luta entre as
    grandes potências europeias pela in-
    f luência sobre o futuro do Império
    Otomano, descrito como “doente”
    pela diplomacia russa, que, pela pri-
    meira vez na história das montanhas
    do Líbano, eclodiram distúrbios san-
    grentos entre camponeses maronitas
    e drusos. Esses confrontos eram con-
    sequência direta da rivalidade impe-
    rialista franco-britânica centrada
    nesse território, que destruiu, com
    suas manobras e manipulações, a
    grande simbiose plurissecular exis-
    tente na região de Shouf entre a co-
    munidade drusa e a maronita. Dessa
    coexistência emergira no passado a
    grande figura de Fakhreddine II, que


reinou sobre o Emirado da Montanha
de 1590 a 1635. Tentando emancipar-
-se da tutela otomana, sobretudo por
meio do estabelecimento de relações
com a Toscana italiana, o emir teve
de enfrentar várias campanhas mili-
tares lideradas pelas tropas da Subli-
me Porta. Capturado pelos otoma-
nos, foi executado por decapitação
em Constantinopla (atual Istambul).
Em 1860, agravaram-se os con-
frontos entre drusos, mais ou menos
apoiados pelo Exército otomano, e
cristãos, espalhando-se pela planície
de Bekaa. A França, então sob o rei-
nado de Napoleão III, decidiu inter-
vir, e suas tropas desembarcaram na
costa libanesa. As cinco potências
europeias e o Império Otomano con-
cordaram em reduzir a área do Líba-
no. Foi em oposição a esse “Pequeno
Líbano” que as autoridades manda-
tárias francesas proclamariam, em 1º
de setembro de 1920, o “Grande Líba-
no”. Com uma área de 10.452 quilô-
metros quadrados, o país nunca dei-
xou de ver seu destino ligado às
rivalidades imperialistas europeias e
até “ocidentais”, se incluirmos os Es-
tados Unidos, país que após a Segun-
da Guerra Mundial se tornou a potên-
cia dominante do “mundo livre”,
mobilizando efetivamente as três re-
ligiões monoteístas para enfrentar o
poder da União Soviética.
Cabe lembrar, de passagem, que
foi durante o período do mandato
francês (1920-1943) que um decreto
de 1936 do Alto Comissário fundou o
comunitarismo institucional. Ele es-
tabeleceu na ordem pública libanesa

as comunidades religiosas, enume-
rando-as e acrescentando uma co-
munidade de direito comum que se-
ria criada para os libaneses não
identificados com as demais. Esse es-
tatuto de natureza civil nunca foi es-
tabelecido, o que hoje obriga muitos
libaneses e libanesas a se dirigirem
ao Chipre, à Turquia ou à França para
se casar fora de sua comunidade.
Estado-tampão, exposto a inf luên-
cias frequentemente antagônicas, o
Líbano sempre teve dificuldade em
assumir sua autodeterminação e su-
perar suas próprias contradições. Em
1949, Georges Naccache (1904-1972),
um dos maiores jornalistas libaneses
e fundador, em 1925, do jornal L’ O r i e n t
(atualmente L’Orient-le jour), publi-
cou um contundente artigo que o le-
vou à prisão. “‘Nem Ocidente nem
arabização’: foi com uma dupla recu-
sa que o cristianismo e o islã concluí-
ram sua aliança [para adotar o pacto
nacional de novembro de 1943, que
serviu como um compromisso não es-
crito entre as comunidades]. Que tipo
de unidade pode sair de uma tal fór-
mula?”, ele se perguntava. “O que me-
tade dos libaneses não quer, enxerga-
mos muito bem. O que a outra metade
não quer, enxergamos muito bem.
Mas o que as duas metades querem
em comum, isso não conseguimos
enxergar. [...] Um Estado não é a soma
de duas impotências – e duas nega-
ções jamais farão uma nação.”^1

GENOCÍDIO ARQUITETÔNICO
Mais tarde, Georges Naccache se tor-
naria um grande admirador do gene-

ral Fuad Chehab (1902-1973), coman-
dante em chefe do Exército libanês,
depois presidente da República Liba-
nesa, entre 1958 e 1964. Ele foi o ver-
dadeiro fundador do Estado libanês,
empreendendo uma impressionante
quantidade de reformas com os lúci-
dos conselhos de Louis-Joseph Lebret
(1897-1966), padre dominicano, eco-
nomista e fundador do Instituto In-
ternacional de Pesquisa, Educação e
Desenvolvimento (Institut Interna-
tional de Recherche et de Formation
Éducation et Développement, Irfed),
a quem pediu que conduzisse, entre
1960 e 1964, um estudo socioeconô-
mico sobre os padrões de vida das di-
ferentes regiões do Líbano. O resulta-
do foi um levantamento muito
exaustivo, que revelava um grande
nível de desigualdade social e uma
maciça concentração de riquezas nas
mãos de uma pequena minoria de li-
baneses, que contrastava com a exis-
tência de bolsões de grande pobreza
nas regiões rurais periféricas do país.
Em uma conferência intitulada “O
Líbano em transformação”,^2 proferi-
da em 1962, o economista alertou os
libaneses contra a persistência des-
sas desigualdades, que poderiam fra-
turar o país. Fratura efetivada em
1975, com a conf lagração generaliza-
da de violência entre os partidos polí-
ticos “cristãos”, sobretudo o partido
falangista criado por Pierre Gemayel,
e o Movimento Nacional Libanês, um
agrupamento de partidos não comu-
nitários sob a condução de Kamal
Joumblatt (1917-1977), líder da comu-
nidade drusa, que exigia maior igual-

Macron e militares que trabalham na reconstrução do porto de Beirute

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