Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 159 (2020-10)

(Antfer) #1

OUTUBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 3


EDITORIAL


O Brasil está queimando


POR SILVIO CACCIA BAVA

C


om a conivência do governo fe-
deral, o Brasil está queimando.
Por meio do desmonte dos ór-
gãos de fiscalização e controle
ambientais federais – Ibama e Insti-
tuto Chico Mendes de Conservação
da Biodiversidade (ICMBio) –, soma-
do à conivência do Ministério do
Meio Ambiente, da Polícia Federal e
do Ministério da Justiça, além do
controle sobre o Instituto Nacional
de Pesquisas Espaciais (Inpe), que
produz mapas que registram o avan-
ço da devastação ambiental, e a Fu-
nai, responsável pela preservação
das reservas indígenas, o governo
Bolsonaro abriu a porteira para pas-
sar a boiada. As leis existem, mas não
são respeitadas, e a impunidade esti-
mula o crime ambiental. O Fundo
Amazônia, criado em 2008, foi sus-
penso em abril de 2019 pelo ministro
do Meio Ambiente, Ricardo Salles.
Com doações bilionárias da Noruega
e da Alemanha, ele servia principal-
mente para financiar os órgãos públi-
cos de controle e fiscalização am-
biental. Deixamos de ter viaturas,
helicópteros e aviões fiscalizando o
desmatamento.
Os grandes proprietários rurais
ligados à produção da carne e da soja
literalmente tocaram fogo nas matas
para ampliar suas áreas de pasta-
gens e de plantio. Numa ação de gri-
lagem de terras que passa inicial-
mente pelo corte ilegal de madeiras
nobres na f loresta, a que se dá o no-
me de desmatamento, e posterior-
mente tocando fogo na f loresta re-
manescente, ainda em pé, abre-se o
espaço para dar lugar a pastagens.
Os mapas do Inpe e da Nasa identifi-
cam que mais da metade dos focos
do fogo na Amazônia ocorre em ma-
tas que ainda estão em pé, e 80% des-
ses incêndios começam nas grandes
propriedades rurais. A Amazônia é
uma f loresta úmida, ela não pega fo-
go espontaneamente, é a ação dessas
empresas e de grandes proprietários
rurais que provoca o fogo, a devasta-
ção, a destruição das f lorestas e da
vida silvestre.
São milhares de focos de incên-
dio na Amazônia, no Cerrado e no
Pantanal. É um ataque nunca visto
em sua dimensão a um ecossistema
que já se encontra extremamente
vulnerável pelo aumento da tempe-
ratura ambiente e a falta de chuvas,
fatores também decorrentes de quei-
madas e desmatamentos anteriores.
Mas o desastre não para aí. Quan-
do se destrói criminosamente as f lo-

restas para dar lugar a pastagens, o
equilíbrio ecológico é afetado e im-
pacta todo o Brasil, de norte a sul.
São milhões de hectares devastados,
mas, mais do que os números, é pre-
ciso saber que mais de 17% da Ama-
zônia foi desmatada e de 20% a 30%
das f lorestas do Pantanal também.
Se ultrapassarmos 20% de destrui-
ção da f loresta amazônica o sistema
não se sustentará e terá início a sava-
nização da região. O impacto dessa
destruição da cobertura vegetal vai
afetar o fornecimento de água em to-
do o país.
É bom que se diga que já tivemos
políticas de controle e contenção do
desmatamento muito eficazes e que
colocaram o Brasil na liderança dos
processos mundiais de preservação
ambiental. Segundo Mario Astrini
(IEA-USP), secretário executivo do
Observatório do Clima, de 2004 a
2012 o Brasil reduziu em 80% o des-
matamento, passando de 27 mil km^2
em 2004 para 5 mil km^2 em 2012. Isso
foi conseguido graças ao esforço con-
junto do Ibama, da Polícia Federal e
das polícias estaduais. Números na-
da comparáveis ao desastre ambien-
tal atual, em que apenas em Mato

Grosso foram queimados 1,4 milhão
de hectares (Ibama/Prevfogo). Nessa
região, o Instituto Centro de Vida
(ICV) identifica nove focos de incên-
dio como a principal causa dessa de-
vastação, todos originados em fron-
teiras de grandes fazendas.
Por que esses incêndios afetam a
todos nós? A Amazônia produz o que
se denomina de “rios voadores”. De
50% a 70% de suas chuvas provêm
das nuvens que vêm do Oceano
Atlântico. Essa chuva é reciclada pela
f loresta, que por sua vez produz nu-
vens de água limpa que são carrega-
das pelos ventos e levadas para o
Pantanal, para o Centro-Oeste, o Su-
deste e o Sul do país. As f lorestas
também estocam carbono, que, se for
liberado, tem um impacto muito for-
te no clima e no aquecimento global.
Com a destruição das f lorestas e a
fumaça das queimadas interagindo
com as nuvens, as chuvas que vêm do
oceano não ocorrem e todo o ciclo de
produção dos “rios voadores” se com-
promete. Por sua vez, o Pantanal fun-
ciona como uma grande caixa-d’água
que distribui essa água pelos rios que
servem a outras regiões. Se o Panta-
nal não recebe o volume de chuvas

necessário, essa distribuição tam-
bém fica comprometida. Os ecossis-
temas são integrados: se uma parte
como a Amazônia ou o Pantanal é
afetada, todo o sistema sofre. As se-
cas ficam mais longas e o período de
chuvas fica menor, mas mais intenso.
Não nos esqueçamos da falta de água
em São Paulo, em 2014.
O modelo de desenvolvimento
atual, predatório e voltado para o
maior lucro imediato é o responsável
por essa situação. Não é por outra ra-
zão que grandes fazendas que estão
na região do Cerrado aterram milha-
res de riachos e nascentes de água
para ampliar sua área de plantio –
água que normalmente alimentaria o
Pantanal, a caixa-d’água de muitos
rios brasileiros.
Uma inusitada aliança de gover-
nos estrangeiros, fundos de investi-
mento, empresas multinacionais, en-
tidades da sociedade civil nacionais e
internacionais faz pressão para que o
governo federal contenha o desmata-
mento e a degradação ambiental.
Mas a necropolítica do governo Bol-
sonaro continua ignorando apelos e
pressões. O que vale é atender aos in-
teresses do agronegócio.

© Claudius

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