Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 160 (2020-11)

(Antfer) #1

10 Le Monde Diplomatique Brasil^ NOVEMBRO 2020


Salvador tem direita


para todos os gostos


Com o sucessor do prefeito ACM Neto na liderança, a direita tem ainda um candidato
bolsonarista e outro que está na base de apoio do governador Rui Costa, do PT

POR NINA SANTOS E THIAGO FERREIRA*

PERSPECTIVA DESOLADORA NO REDUTO DA ESQUERDA


N


ão se pode dizer que Salvador
esteja mal servida de direita
nestas eleições. Após dois
mandatos de ACM Neto (DEM)
na prefeitura e catorze anos do Parti-
do dos Trabalhadores à frente do go-
verno estadual, são três os candida-
tos que dividem a atenção desse
eleitorado que se fortaleceu e elegeu,
pela primeira vez, um presidente da
República de extrema direita: Bruno
Reis, atual vice-prefeito e candidato
do Democratas à prefeitura da cida-
de; Cezar Leite, médico que se elegeu
vereador pelo PSDB na onda do Movi-
mento Brasil Livre e do bolsonaris-
mo; e pastor sargento Isidório, o fun-
damentalista que defende a cura gay,
candidato da base do governador pe-
tista Rui Costa.

A DIREITA LIBERAL DE ACM
NETO E BRUNO REIS
Representando a direita (ultra)liberal
na disputa, Bruno Reis é cria direta
de ACM Neto, do DEM. Foi assessor
do atual prefeito, depois eleito depu-
tado estadual pelo PMDB dos irmãos
Vieira Lima em 2010, contando com a
força do prefeito da capital. Neto viu
nesse movimento a possibilidade de
atrair o partido para sua base.
Em 2016, coube a Bruno o papel de
vice de seu padrinho político, em um
movimento que colocou para escan-
teio a então vice, uma mulher negra,
Célia Sacramento. Em 2020, após ocu-
par diferentes funções na administra-
ção do DEM e contar com a máquina,
ele é o escolhido para suceder a Neto
depois de oito anos da volta dos carlis-
tas à Prefeitura de Salvador.
Apesar de o PT ser vitorioso em
eleições estaduais e nacionais na capi-
tal baiana há muitos pleitos, a cidade
foi governada pela esquerda apenas
uma vez durante todo o período pós-
-redemocratização. Entre 1993 e 1996,
o ciclo do carlismo foi interrompido
por Lídice da Mata, hoje deputada fe-
deral pelo PSB, mas na época filiada
ao PSDB. Lídice teve seu mandato boi-
cotado pelo então governador ACM.

Era uma relação bem diferente da
atual cordialidade que marca a rela-
ção entre Rui Costa e ACM Neto.
Essa postura conciliadora talvez
seja a principal diferença entre Bruno
Reis e os outros dois candidatos de di-
reita. Sua defesa das liberdades indi-
viduais não pode ser desatrelada das
posições econômica e sociais. O apoio
dele, junto a outros grandes nomes do
DEM, como o próprio ACM Neto e o
presidente da Câmara, Rodrigo Maia,
a projetos como o Teto de Gastos e a
Reforma Administrativa, representa
uma clara opção pela restrição dos in-
vestimentos públicos em áreas essen-
ciais, como a saúde. Se no mar de con-
servadorismo atual ele pode parecer
ter uma posição moderada, não se po-
de minimizar o impacto que esse tipo
de modelo de sociedade tem, em es-
pecial sobre os mais pobres.

O BOLSONARISMO GANHA VERTENTE
MÉDICA EM PLENA PANDEMIA
Diferentemente da atuação dos de-
mocratas, Cezar Leite, vereador do
PRTB, se apresenta como legítimo
defensor do bolsonarismo. Em uma
cidade onde Bolsonaro perdeu em to-
das as zonas eleitorais e atualmente,
segundo o Ibope, tem a menor apro-
vação entre as capitais, o posiciona-
mento visa, na verdade, alçar espaço
em outras casas legislativas. Ex-mili-
tante do Movimento Brasil Livre e ex-
-filiado ao PSDB, Leite tentou uma
vaga, em 2018, como deputado fede-
ral, mas não foi eleito.
Conservador nos costumes e libe-
ral na economia, é assim que Cezar
Leite (PRTB) se declara, assumindo
um tom que provavelmente seria ca-
paz de agradar tanto à ministra
Damares Alves como ao ministro
Paulo Guedes. Do partido do vice-
-presidente Hamilton Mourão, Leite
não tem direito a inserções no Horá-
rio Eleitoral Gratuito, o que não deve-
ria ser um problema se ele seguir os
passos de seu maior exemplo: o presi-
dente Jair Bolsonaro, eleito utilizan-
do amplas estratégias – diversas ve-

zes denunciadas como ilegais – nas
mídias digitais.
Não deixa de ser interessante
acompanhar o desenrolar de candi-
daturas médicas em pleno cenário de
pandemia. Assim como o ex-juiz Sér-
gio Moro ganhou proeminência co-
mo figura política em meio a um su-
posto combate à corrupção, o
ex-ministro Luiz Henrique Mandetta
e seus inúmeros sucessores nos di-
versos níveis da administração ga-
nharam visibilidade no contexto da
crise sanitária. Sempre apontados
como figuras técnicas e especializa-
das – diferentes, portanto, da tradi-
cional imagem dos políticos –, eles
tendem a ser vistos como salvadores
da pátria, como se a salvação política
estivesse em posicionamentos apre-
sentados como apolíticos. A ver como
isso se ref letirá nestas eleições.
Na pesquisa eleitoral realizada
pelo Ibope e divulgada no dia 5 de ou-
tubro, Leite apareceu empatado tec-
nicamente com as candidatas do PT e
do PCdoB, Major Denice Santiago e
Olívia Santana. Elas com 6% e ele
com 3%, respectivamente. A margem
de erro foi de 4 pontos percentuais.

O PASTOR SARGENTO QUE É
BASE DO GOVERNO PETISTA
Dividida em muitas candidaturas, a
base do governador Rui Costa (PT)
também tem um postulante de direi-
ta para chamar de seu: o pastor sar-
gento Isidório (Avante). Além dele,
são candidatas governistas major De-
nice (PT), Olívia Santana (PCdoB) e
João Carlos Bacelar (Podemos). A es-
tratégia política do governador em
fomentar a divisão de sua base foi
buscar, segundo ele, forçar a realiza-
ção do segundo turno.
Para tanto, parece valer a pena in-
clusive incentivar a candidatura de
um personagem que, de maneira
contraditória, surfa na onda da direi-
ta fundamentalista e conservadora
afirmando ser ex-gay e, portanto, a
prova viva de que a cura gay existe.
Pastor e sargento, Isidório mistura

dois campos bastante complexos: o
militar e o religioso.
Isidório tem na Fundação Dr. Je-
sus, sua clínica de reabilitação no in-
terior do estado, o ponto de aproxi-
mação com os petistas. Com
passagens pelo PT e PSB, Isidório ex-
põe as contradições da política na-
cional, tendo se reaproximado dos
petistas após a decisão do governa-
dor Jaques Wagner de apoiar sua clí-
nica, sobre a qual recaem acusações
de maus-tratos.
Deputado federal mais votado do
estado em 2018, com mais de 300 mil
votos, e com o apoio e estrutura do
PSD, partido dos senadores Otto
Alencar e Ângelo Coronel, Isidório
não é apenas o candidato folclórico
(ele próprio se apresenta como o
“doido”); é a direita conservadora
buscando governar a prefeitura de
uma das maiores cidades do país. Ele
ocupa atualmente a segunda posição
nos levantamentos eleitorais. Decla-
rando-se eleitor de Fernando Had-
dad, o pastor sargento pede agora re-
ciprocidade do PT caso passe para o
segundo turno.
Terá de combinar com os russos: a
militância de esquerda, em um even-
tual segundo turno entre a cruz fun-
damentalista e a espada ultraliberal,
já considera dar seus votos para o
candidato de ACM Neto, temerosa
com a experiência de Marcelo Crivel-
la no Rio e a força da Bancada da Bí-
blia no Congresso. Em um estado
considerado reduto da esquerda, essa
parece uma perspectiva nada menos
que desoladora.

*Nina Santos é pós-doutoranda no Insti-
tuto Nacional de Ciência e Tecnologia em
Democracia Digital (INCT.DD) e pesquisa-
dora associada do Centre d’Analyse et de
Recherche Interdisciplinaires sur les Mé-
dias (Université Paris II); Thiago Ferreira é
jornalista, pesquisador associado ao Cen-
tro de Pesquisa em Estudos Culturais e
Transformações na Comunicação (Tracc-
-UFBA) e doutor em Comunicação e Cultu-
ra Contemporâneas pelo Póscom-UFBA.

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