Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 160 (2020-11)

(Antfer) #1

20 Le Monde Diplomatique Brasil^ NOVEMBRO 2020


CONFLITOS DE INTERESSE E DESCONFIANÇA


A França enfrenta a segunda onda de Covid-19 em um
clima de ceticismo e desânimo. A desconfiança causada
pela negligência e pelo autoritarismo do poder público torna
ainda mais árdua a saída de uma crise profunda. A incerteza
não poupa nem o saber médico, suspeito de sucumbir às
influências políticas, midiáticas e, sobretudo, econômicas

POR PHILIPPE DESCAMPS*

Uma medicina


influenciável


“E


u me recuso, hoje, a reco-
mendar o uso da máscara
para todos e jamais o go-
verno a recomendou. Se a
recomendássemos, seria incom-
preensível.” Afirmações como essas
não emanam de “negacionistas” nem
de outros “conspiradores”. Elas fo-
ram proferidas pelo presidente da Re-
pública francesa em meados de abril
de 2020,^1 quando a Covid-19 já tinha
causado a morte de mais de 17 mil
pessoas no país. No entanto, desde
seu primeiro informe, o Conselho
Científico francês recomendou o re-
forço de medidas de prevenção, “ga-
rantindo a disponibilidade de álcool
gel e máscaras cirúrgicas para a po-
pulação”. O mesmo Conselho consi-
derou também que é “importante pa-
ra a credibilidade de todas as medidas
propostas que elas se mostrem priva-
das de qualquer estratégia política”. A
partir de então, não usar máscara se
tornou passível de multa.
O hiato entre as promessas suces-
sivas sobre as máscaras, os testes ou
o acompanhamento das pessoas in-
fectadas e a realidade explica a prio-
ridade anunciada pelo primeiro-mi-
nistro Jean Castex ao chegar a
Matignon no mês de julho: “É preciso
restabelecer a confiança!”. A tarefa
será ainda mais difícil porque a des-
confiança atinge por capilaridade a
expertise em saúde pública.^2 “Vê-se
claramente que, em relação à primei-
ra onda, os cidadãos têm mais difi-
culdade de aderir às recomenda-
ções”, constata Dominique Le
Guludec, presidente da Haute Autori-
té de Santé (HAS). Presidente da So-
ciété de Pathologie Infectieuse de
Langue Française (Spilf, Sociedade
de Patologia Infecciosa de Língua
Francesa), Pierre Tattevin se inquie-
ta: “Trata-se de uma doença muito
grave, a crise de confiança. E vai se
estender se não adotarmos as medi-
das adequadas”.

De acordo com as pesquisas de
opinião, a pandemia teria reforçado
sobretudo a visão positiva que os
franceses têm da ciência: 69% das
pessoas entrevistadas disseram em
junho ter “mais confiança na ciência”
e 24% afirmaram nela “confiar intei-
ramente”, um total superior ao do
ano passado.^3 Em compensação, dois
terços dos entrevistados avaliaram
que os pesquisadores não “souberam
prever a escalada do coronavírus” e
53% que eles “não foram claros”. Será
uma desconfiança passageira? É pos-
sível colocar isso em dúvida, pois a
desconfiança do Estado se inscreve
em uma situação mais antiga de de-
sengajamento e monopolização de
interesses privados dos quais a ciên-
cia médica não escapou.

INCERTEZA
“Como este foi o único assunto na or-
dem do dia, com a redução diária do
número de mortes, convidamos fi-
nalmente o grande público para par-
ticipar dos grupos de crise”, observa
Tattevin. “As pessoas se deram conta
muito rapidamente de que os espe-
cialistas se enganaram. Não por se-
rem ruins, mas porque isso é novo.
Neste caso, muitos dizem que vão re-
f letir por si sós.”
Chefe do serviço de doenças infec-
ciosas no Hospital Bichat e membro do
Conselho Científico, Yazdan Yaz-
danpanah faz parte dos que anuncia-
ram em janeiro que não haveria epide-
mia. Atualmente, ele acha importante
reconhecer seus erros: “Não convém
tratar as pessoas como crianças. É pre-
ciso envolvê-las, ter uma mensagem
clara; ainda é tempo. Deveria ter sido
mais prudente. Fui sincero, não queria
esconder alguma coisa, raciocinei
com base em meus conhecimentos so-
bre essa família de coronavírus. De-
pois, entendi que era possível transmi-
tir essa doença sem ter sintomas, ou
vários dias antes de senti-los”.

“A incerteza é angustiante, mas é
uma realidade. Temo que, ao querer se
mostrar muito afirmativo ou apagar
as incertezas, não se construa a con-
fiança. Os cientistas não estão aí para
tranquilizar”, considera Le Guludec.
Na direção do Haut Conseil de la San-
té Publique [Alto Conselho da Saúde
Pública], Franck Chauvin declara na
mesma direção: “Pedimos aos espe-
cialistas que revelem certezas. Ora, a
ciência é construída progressivamen-
te. Na medicina, acima de tudo, agre-
gam-se evidências parciais para com
elas chegar a uma certeza”.
Desde o fim de março, as declara-
ções do professor Didier Raoult, na-
tural de Marselha, defendendo um
tratamento à base de hidroxicloro-
quina e azitromicina monopoliza-
ram a atenção. Chauvin reage: “A
ciência é construída por meio da con-
trovérsia, e isso é normal. Mas tor-
nou-se um espetáculo transmitido
pela televisão, que transformou os
cientistas em gladiadores”.

CONTROVÉRSIAS
A questão ganhou outra dimensão
quando o presidente dos Estados
Unidos e, em seguida, o do Brasil pas-
saram a promover a hidroxicloroqui-
na. Todo o mundo foi intimado a ter
um ponto de vista, enquanto os feitos
científicos continuavam indefinidos.
“Nós que, todo ano, avaliamos os me-
dicamentos guardamos um enorme
silêncio sobre o assunto porque não
tínhamos dados. Não queríamos
acrescentar cacofonia à cacofonia”,
reconhece Le Guludec. A Splif, que
reúne mais de quinhentos especialis-
tas em doenças infecciosas, acabou
registrando uma queixa contra
Raoult no Conseil de l’Ordre des Mé-
decins (Conselho da Ordem dos Mé-
dicos), lembrando o Código de Deon-
tologia: “Os médicos não devem
divulgar nos ambientes médicos um
novo procedimento de diagnóstico
ou de tratamento insuficientemente
comprovado sem acompanhar seu
comunicado das preocupações que
se impõem. Eles não devem fazer es-
se tipo de divulgação para um públi-
co que não seja médico”.^4
A amplitude dessa polêmica, que
minou a confiança, provavelmente se
deve muito às redes sociais e às emis-
sões das redes de televisão, mas tam-
bém às falhas na organização dos tra-
tamentos e da produção do saber. A
equipe do Institut Hospitalo-Univer-
sitaire (Instituto Hospitalar Universi-
tário) de Marselha testou em massa a
população, quando isso era pratica-
mente impossível em outros lugares.
Ela correspondeu também a uma ex-
pectativa, quando a maior parte dos
pacientes sofria sozinha com a ins-
trução de só chamar se seu estado se
agravasse. Pressionada a desqualifi-

car a hidroxicloroquina, uma das re-
vistas médicas mais prestigiadas do
mundo, The Lancet, teve de admitir
não poder garantir a veracidade das
fontes utilizadas e acabou tendo de
desabonar um artigo que apresentava
o tratamento como perigoso.^5 Entre-
mentes, essa publicação levou à inter-
rupção do teste desse tratamento no
ensaio clínico francês Discovery...
Chefe do serviço de doenças in-
fecciosas do Hospital Saint-Antoine,
Karine Lacombe tentou soar o alar-
me sobre a baixa relação custo-be-
nefício da hidroxicloroquina. Mas
seus inúmeros vínculos com a in-
dústria farmacêutica se voltaram
contra ela como um bumerangue,
especialmente com o Gilead, que fa-
brica o Remdesivir, outro remédio
cogitado – também ineficaz, de acor-
do com o teste em grande escala da
Organização Mundial da Saúde
(OMS).^6 Ela se defende: “Houve acu-
sações de conflito de interesses,
quando são vínculos enquadrados
pela lei. Além disso, esses vínculos
dizem respeito ao HIV e à hepatite
viral, de forma alguma à Covid. Isso
é, de fato, uma manipulação. Penso
que foram ataques pessoais por cau-
sa do que represento: a emergência
de mulheres competentes, capazes
de se expressar”.
Suas desventuras evidenciaram,
sobretudo, a onipresença da indús-
tria farmacêutica na pesquisa médica
e na formação dos médicos. Mesmo
que ela tenha sido instrumentalizada
pelos aliados de Raoult, a inf luência
dos interesses industriais representa
uma questão essencial, com frequên-
cia dissimulada. A prova disso é a
rapidez com que foram constituídos
o Conseil Scientifique Covid-19 (Con-
selho Científico Covid-19) e o Comité
Analyse Recherche et Expertise
(Comitê de Análise, Pesquisa e Exper-
tise), dos quais vários membros se
beneficiam de remunerações, “hos-
pitalidades” ou contratos diversos, às
vezes declarados tardiamente. “Infe-
lizmente, isso é revelador da situação
atual. Apesar de todos os escândalos
e desastres, isso continua. Muitos
especialistas têm vínculos de interes-
ses e estarão em situação de conf lito
de interesses quando mobilizados
para atender ao interesse geral”,
comenta Bruno Toussaint, diretor
editorial da revista Prescrire.
Fundada em 1981, a Prescrire fun-
ciona sem publicidade, sem subven-
ções e com uma prática de revisão ri-
gorosa. Ela avalia com regularidade
os medicamentos e publica anual-
mente uma lista dos que precisariam
ser descartados. Bem cedo, ela aler-
tou sobre o perigo do Mediator, assim
como de outros produtos na origem
de catástrofes sanitárias, todos indis-
sociáveis de conf litos de interesses.

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