Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 160 (2020-11)

(Antfer) #1

36 Le Monde Diplomatique Brasil^ NOVEMBRO 2020


Liverpool: futebol


e identidade


Para seus torcedores, o Liverpool Football Club é o emblema de uma cidade orgulhosa de
sua singularidade, ao mesmo tempo popular, aberta para o mundo e desafiadora em relação
ao resto do país. No controle do clube há dez anos, os proprietários norte-americanos
cultivam cuidadosamente essa imagem, que seduz para além das fronteiras da cidade

POR QUENTIN GUILLON*, ENVIADO ESPECIAL

É


um momento de comunhão fa-
moso em todo o mundo. Antes
de cada partida do Liverpool
Football Club (Liverpool) em
casa, os torcedores, entre eles os da
kop, parte da arquibancada onde se
reúnem os mais fervorosos, entoam o
hino “You’ll Never Walk Alone” [Vo-
cês nunca caminharão sozinhos],
símbolo de uma devoção total a um
time que figura entre os gigantes do
Reino Unido e da Europa. Numa épo-
ca do dinheiro todo-poderoso e da
globalização do futebol, o Liverpool,
comprado pelo conglomerado norte-
-americano Fenway Sports Group
(FSG), tem a firme intenção de encar-
nar a singularidade de uma cidade
em relação ao resto da Inglaterra. Ele
reivindica também uma combinação
entre os objetivos financeiros e a pai-
xão dos fãs, graças à adesão a princí-
pios “socialistas”.
Campeão da Europa em 2019 e,
pela primeira vez nos últimos trinta
anos, vencedor em junho de 2020 do
Campeonato Inglês, o clube não para
de se reportar a Bill Shankly, seu ilus-
tre ex-treinador (entre 1959 e 1974),
homenageado com uma estátua na
entrada do estádio Anfield, o antro do
Liverpool.^1 Conhecido por sua famosa
declaração – “O futebol não é uma
questão de vida ou de morte. É muito
mais importante que isso”–, Shankly
tinha exposto sua visão para os joga-
dores: “Que cada um trabalhe para al-
cançar o mesmo objetivo e que cada
um compartilhe o sucesso se alcan-
çá-lo: este é o socialismo em que acre-
dito. Assim vejo o futebol e a vida”.
Quase cinquenta anos depois, o CEO
do clube, Peter Moore, declarou, nas
páginas do diário espanhol El País, a
mesma mensagem: “O êxito do Liver-
pool se baseia no socialismo”.s Reali-
dade ou oportunismo por parte do re-
presentante do FSG, terceira empresa
de esportes do mundo segundo a For-
bes, conglomerado que fatura por ano
US$ 6,6 bilhões (dos quais US$ 2,2 bi-
lhões relativos ao Liverpool)? A mes-
ma pergunta é feita quando se trata

do treinador, Jürgen Klopp, cujo salá-
rio anual chega a 11,3 milhões de eu-
ros e que declara sua adesão aos valo-
res “de esquerda”, jurando que não
votará “jamais na direita”.
Para compreender a particulari-
dade do Liverpool, é preciso auscultar
“o coração scouse que bate durante os
jogos da Liga dos Campeões”, como
nos explica Joe Blott, que dirige o Spi-
rit of Shankly, o mais importante gru-
po de torcedores. Liverpool tem uma
história tumultuada. A cidade se enri-
queceu durante dois séculos graças à
escravidão (“É triste, mas reconhece-
mos isso”, diz Blott); a soberania de
seu porto propiciou sua prosperidade.
O scouse, um prato energético (bata-
tas, carne bovina e cenouras cozidas)
derivado do lapskaus norueguês, foi
introduzido pelos marinheiros es-
candinavos no final do século XVIII.
Mais tarde, seus homólogos na região
passam a se chamar scousers, usando
a base da identidade local. Para Peter
Millward, sociólogo que vive na cida-
de onde nasceram os Beatles, “Liver-
pool se situa no meio do caminho en-
tre a cultura insular britânica e as
múltiplas inf luências de seus movi-
mentos populacionais. A cidade tor-
nou-se cosmopolita”. Ele se refere à
imigração irlandesa – que faz da cida-
de um bastião católico em um país
consideravelmente protestante –,
mas também galês, escandinavo etc.
A pronúncia scouse, que vibra nos ou-
vidos do neófito, surgiu dessas múlti-
plas inf luências.
Liverpool foi violentamente atin-
gida pela crise econômica dos anos
1970 e 1980. “Um relatório de 1981,
publicado 28 anos depois, garante
que o objetivo do governo de [primei-
ra-ministra] Margaret Thatcher era
deixar a cidade morrer”, lembra o so-
ciólogo.^3 A desindustrialização maci-
ça provocou um enorme crescimento
do desemprego e da pobreza. Mas os
“Reds” (o Liverpool), um dos dois clu-
bes da cidade, e os “Blues”, do Everton
Football Club (EFC), permaneceram.
“Éramos os melhores da Europa. O

futebol era a única área em que o go-
verno Thatcher não podia nos causar
sofrimento”, lembra o icônico zaguei-
ro Jamie Carragher. O clube viveu,
então, o período mais glorioso de sua
história, ganhando onze títulos de
campeão inglês e quatro Copas dos
Campeões, sob o rigor de John Smith,
seu presidente de 1973 a 1990.
“O Liverpool nos salvou da de-
pressão”, afirma o historiador Frank
Carlyle em uma obra do pesquisador
e especialista em futebol Daniel
Fieldsend, consagrada ao clube e à ci-
dade.4 O livro cita também o produ-
tor e escritor Dave Kirby, que decla-
rou em 1977: “O clube representa
quem somos, nossas esperanças,
nossos sonhos. Ele permite que a
maioria de nós tenha um bom fim de
semana, esquecendo o desemprego,
a fábrica, a merda cotidiana. Existi-
mos para ele e ele existe para nós”.
Vinte anos depois, a grande proeza de
um jogador também permanece em
suas memórias. Em 1997, quando os
portuários entraram em greve e luta-
vam pela sobrevivência, Robbie Fo-
wler comemorou seu 113º gol, com
apenas 21 anos, mostrando sob sua
camisa uma camiseta com esta ins-
crição: “Apoio aos quinhentos por-
tuários de Liverpool demitidos em
setembro de 1995”. Sua atitude possi-
bilitou a divulgação do conf lito pela
mídia; Fowler continua admirado
por esse gesto.

EM 1989, O DRAMA
DE HILLSBOROUGH
Além da crise econômica, uma tragé-
dia ainda une os habitantes da cida-
de. No dia 15 de abril de 1989, por
ocasião da semifinal da Copa da In-
glaterra, o Liverpool enfrentou o Not-
tingham Forest no estádio de Hills-
borough, em Sheffield. Quando a
partida já havia começado, milhares
de espectadores que chegaram atra-
sados se amontoaram para entrar no
estádio. Noventa e seis deles, inclusi-
ve crianças, morreram esmagados
nas grades dos portões ou pisotea-

dos. Quatro anos antes, o Liverpool já
havia sido questionado pelo compor-
tamento violento de seus torcedores
quando houve o tumulto assassino
no estádio de Heysel, na Bélgica, em
29 de maio de 1985, na final da Copa
dos Campeões, que ele disputou com
a Juventus de Turim: 39 mortos e 450
feridos. Também dessa vez ele ficou
no banco dos réus. Poucos dias de-
pois, a manchete do diário The Sun
foi: “The Truth” [A verdade] e, reto-
mando a versão da polícia, acusou os
torcedores como os únicos responsá-
veis pelo que ocorreu. O jornal sus-
tentou também três acusações que se
revelaram mentirosas: “Fãs [do Li-
verpool] urinaram nos bravos poli-
ciais [que tentavam reanimar feri-
dos]”; “Fãs bateram a carteira de
vítimas”; “Fãs impediram que as víti-
mas fossem socorridas pela respira-
ção boca a boca”.
Em 2009, durante a homenagem
no Anfield aos atingidos pela tragé-
dia de Hillsborough, o deputado An-
drew Burnham, ministro da Cultura,
das Comunicações e dos Esportes, fez
um discurso em nome do governo
trabalhista do primeiro-ministro
Gordon Brown. Espontaneamente, os
cerca de 28 mil espectadores se le-
vantaram e bradaram: “Justice for
the ninety-six!” [Justiça para os no-
venta e seis!]. Em seguida, foi aberto
um inquérito independente que, em
2012, eximiu de culpa o Liverpool e
comprovou a esmagadora responsa-
bilidade da polícia, culpada funda-
mentalmente por ter trancado os
portões, assim como pelas mentiras
transmitidas pelo The Sun, por ou-
tras mídias e pelos políticos.
A tragédia de Hillsborough contri-
buiu para reforçar a particularidade
de uma cidade que, desde 1972, não é
mais governada pelos membros do
Partido Conservador. Assim, nos últi-
mos anos, as arquibancadas têm res-
soado ruídos de vozes de apoio ao ex-
-dirigente do Partido Trabalhista
Jeremy Corbyn. “Nenhum grupo de
torcedores os suscitou. Eles foram es-
pontâneos”, garante Blott. Por sua
vez, relembra Ian Byrne: “A injustiça
nos transformou. Alguns dos que
nasceram em Liverpool querem até
que sua cidade seja um enclave inde-
pendente do Reino Unido. É preciso
lembrar que a grande greve dos por-
tuários em 1911 já tinha nos unido”.
Byrne é fã inveterado do clube e de-
putado da circunscrição vizinha
West-Derby desde 2019. “Não somos
ingleses; somos scousers”, clamam
em intervalos regulares faixas e tifos^5
nas arquibancadas do estádio. “Li-
verpool para nós é nossa pequena Re-
pública”, escreve também Fieldsend.
Portanto, o Liverpool é o campeão
de um país cujos governantes os tor-
cedores abominam, acusando-os de

“O ÊXITO DO CLUBE SE BASEIA NO SOCIALISMO”


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