Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 160 (2020-11)

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NOV EMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 5


ser um tema bastante afeto aos go-
vernos estaduais, que gerem as forças
policiais militares, o aumento das
atribuições das guardas municipais,
a partir de 2014, coloca esse tema
também na agenda dos municípios.
É nas políticas urbanas, porém,
que os impactos das gestões munici-
pais dos partidos do campo conser-
vador se tornam ainda mais eviden-
tes. Transporte público, moradia,
saneamento ambiental, infraestru-
tura e serviços urbanos, gestão de re-
síduos e regulação do uso e ocupação
do solo são alguns dos temas mais
importantes nas políticas municipais
e se relacionam tanto com a garantia
de direitos humanos e sociais quanto
com os interesses empresariais das
indústrias da construção civil, dos
transportes e do mercado imobiliá-
rio. Exatamente por esse motivo, o
viés ideológico dos governos munici-
pais é fundamental para as possibili-
dades de construção da justiça urba-
na e do direito à cidade.
Nos municípios administrados por
partidos de corte neoliberal, ou politi-
camente conservadores, é fácil cons-
tatar a ampliação dos casos de despe-
jos forçados, a redução de recursos
para a política habitacional e a insti-
tuição de privilégios para o capital
imobiliário e setores empresariais do
transporte e da construção civil. A re-
corrente f lexibilização de normas de
uso e ocupação do solo, a concessão
de benefícios como cotas de potencial
construtivo e a revisão dos planos di-
retores com a adoção de diretrizes
pró-mercado têm sido a tônica dos go-
vernos municipais de direita. Durante
a pandemia, essas práticas ganharam
a “oportunidade” de serem adotadas
com a supressão dos processos públi-
cos de consulta e deliberação, confi-
gurando o que se convencionou cha-
mar de “boiadas urbanísticas”,
inspirado nas boiadas ambientais do
ministro Ricardo Salles.
Em Maringá, cidade média no
norte do Paraná, assiste-se, neste
momento, a uma intensa movimen-
tação por parte da gestão pública na
busca por alteração da legislação ur-
banística, em sua maioria voltada à
intensificação do solo ou à mudança
de uso. Essas solicitações de mudan-
ça têm ocorrido em plena revisão do
Plano Diretor, a qual deveria ser sus-
pensa pela impossibilidade de even-
tos participativos.
Em Porto Alegre, capital reconhe-
cida internacionalmente pela expe-
riência pioneira do Orçamento Parti-
cipativo (OP), o cenário atual é de
descaso com as esferas de participa-
ção social. O OP chegou a ser cance-
lado temporariamente em 2017, com
a justificativa de falta de recursos.
Projetos de lei para a extinção dos
fundos municipais foram postos em


mais colegiada e participativa na to-
mada de decisões, está mais bem po-
sicionada para construir as pontes
entre a macro e a micropolítica urba-
na e as saídas que escapam à forma-
lidade institucional.
Outro aspecto crucial é o que se
refere à disponibilização dos orça-
mentos públicos para a agenda do di-
reito à cidade. De fato, a democracia
participativa no nível local, aliada à
ampliação da democracia represen-
tativa nos níveis macro da tomada de
decisões nas cidades, se não estive-
rem acompanhadas da disponibili-
zação de orçamentos públicos para
essa agenda, serão como “fé sem
obras” ou como um discurso teórico
sem conteúdo prático.
Portanto, os orçamentos públicos
devem estar voltados para o enfren-
tamento dessa problemática que in-
corpora uma imensa diversidade,
uma vez que a exclusão social se ex-
prime como um caleidoscópio de
problemas extremamente complexo.
É a razão por que seu uso só poderá
ter foco e alcance na medida em que
esteja guiado pela única chave de lei-
tura coerente dessa diversidade: a
materialização da vontade coletiva
da população que vive nesses territó-
rios reais e heterogêneos.
Some-se ao aprofundamento da
democracia e à disponibilização de
orçamentos públicos o entendimento
de que esse processo participativo
fortalece o protagonismo popular,
produzindo em número e qualidade
uma cidadania participativa que tem
papel na estabilização do Estado de
direito e na continuidade da amplia-
ção dos espaços democráticos, viabi-
lizando, com sua participação cida-
dã, a agenda do direito à cidade.
É essa a receita que vêm seguindo
diversas experiências acompanha-
das de perto pelo BrCidades. O Orça-
mento Legislativo Participativo de
Florianópolis, a gestão municipal
participativa da Prefeitura do Conde,
na Paraíba, ou a Rede Inclusão de Na-
tal ilustram o que nossa rede enxerga
como caminho para a construção do
Projeto Popular de Cidades em alter-
nativa às políticas neoliberais que
vêm nos af ligindo nos últimos anos.
Precisamos direcionar nossas ener-
gias para repensar a vida urbana e
apostar nos protagonismos dos no-
vos movimentos sociais periféricos.
É hora de propor cidades mais jus-
tas, democráticas e ambientalmente
viáveis.

*Beatriz Fleury e Silva, Carina Serra
Amancio, Clarice Oliveira, Cesar Vieira,
Conrado Ferrato, Ion de Andrade, José
Ricardo Faria, Marcelo Leão e Maria Ca-
rolina Maziviero são membros da Rede
BrCidades.

curso, a participação nos Conselhos
Municipais foi cerceada, o quadro
técnico municipal sistematicamente
desvalorizado e a Secretaria de Urba-
nismo extinta. A revisão do Plano Di-
retor tem sido realizada por decreto,
ignorando o processo participativo
previsto por lei.

EXISTEM ALTERNATIVAS
PARA EVITAR O DESASTRE?
O BrCidades, uma rede formada por
urbanistas, engenheiros, jornalistas,
membros do Judiciário, profissionais
da área de saúde, entre outros espe-
cialistas, cujo objetivo é propor um
debate profundo sobre nossas cida-
des e as alternativas para as políticas
urbanas deste país, tem se debruçado
sobre o assunto a fim de encontrar
caminhos e alternativas diante desse
cenário desastroso.
Por exemplo, em Curitiba, mem-
bros da Rede BrCidades criaram um
documento elaborado com base em
diálogos entre movimentos sociais,
grupos organizados e lideranças para
incluir e pautar pontos centrais para
as candidaturas de 2020. A Platafor-
ma da Política Urbana – Por um Pro-
jeto Popular para Curitiba procura
conectar as questões que atravessam
o cotidiano das pessoas e as candida-
turas do Legislativo local, já tendo si-
do subscrita por 45 entidades.
Em Maringá, os membros do Br-
Cidades, estruturados no grupo de
trabalho denominado Eleições 2020,
lançaram a Agenda Urbana Maringá,
um conjunto de ações de incidência
na eleição municipal. Foi criada uma
Carta Compromisso, elaborada com
base na Agenda Urbana Maringá. A
Carta foi amplamente divulgada e
apresentada às candidaturas à Pre-
feitura de Maringá, convidando-as,
uma vez eleitas, a orientar sua gestão
pela plataforma do direito à cidade,
que tem como objetivo a configura-
ção de uma nova agenda urbana para
promover cidades socialmente jus-
tas, inclusivas, democráticas e am-
bientalmente sustentáveis.
Em Porto Alegre, o Núcleo BrCi-
dades atuou em conjunto com outros
coletivos e organizações locais enga-
jados na construção de cidades mais
equânimes e democráticas. O Nú-
cleo contribuiu com a Plataforma
Atua PoA, um coletivo que surgiu em
meados de 2019, formado para atuar
na garantia dos direitos perante a re-
visão do Plano Diretor. O Atua PoA,
em conjunto com diversas organiza-
ções, participa da mesa de negocia-
ções no Ministério Público Estadual
junto à Prefeitura. Em março de
2020, o MP recomendou que a revi-
são fosse suspensa por ocasião da
pandemia de Covid-19.
O Núcleo também participou da
formulação da Carta aos Candidatos

da Rede do Urbanismo contra o Co-
rona RS, desenvolvida durante a pan-
demia, e da criação do documento
unificado no combate à Covid-19 nas
periferias urbanas, favelas e junto
aos grupos sociais vulneráveis.

PARTICIPAR É PRECISO
Desde o fortalecimento da extrema
direita, a partir de 2016, os embates
em favor da democracia se fizeram
urgentes. A agenda política progres-
sista parece não ter dado a devida im-
portância às conexões entre a ques-
tão municipal, a questão democrática
e as políticas urbanas. No entanto, o
poder local tem papel crucial na re-
construção da democracia, pois é
nesse nível que a população vivencia
cotidianamente retrocessos e avan-
ços na experiência urbana que são a
expressão perceptível da sociedade
como ela é.
Como exemplo, a gestão orça-
mentária participativa, a urbaniza-
ção de favelas, a criação dos corredo-
res de ônibus, as melhorias
habitacionais e urbanas por autoges-
tão e muitos outros programas assi-
naram um marco de esperança para
a superação de uma sociedade atra-
sada e extremamente desigual.
Em contrapartida, as mobiliza-
ções e a multiplicação de iniciativas
periféricas espalhadas pelos municí-
pios brasileiros sinalizam para ne-
cessidades não atendidas e mudan-
ças sociais e urbanas possíveis. A
gestão das cidades nos próximos
anos será tarefa das mais complexas,
em virtude da emergência de uma
imensa diversidade de problemas a
resolver nos territórios e de um prota-
gonismo local com reivindicações es-
pecíficas, representatividade e capa-
cidade de mobilização.
Tal configuração pressionará as
atuais formas de tomada de decisão,
baseadas na liturgia da democracia
representativa, repondo na ordem do
dia elementos incontornáveis de de-
mocracia direta, sobretudo no que
toca às questões locais que agregam
no Brasil um imenso passivo produ-
zido por séculos de exclusão social. A
incorporação de elementos de demo-
cracia direta à tomada de decisões
nas cidades posiciona a esquerda em
vantagem se vier a buscar inspiração
em experiências como a do Orça-
mento Participativo.
Os exercícios importantes de dis-
cussão dos planos diretores munici-
pais, arena onde se enfrentam proje-
tos de cidade muitas vezes
irreconciliáveis e cruciais para a de-
finição da macropolítica urbana,
não são suficientes para resolver os
desafios colocados por questões im-
portantes nos contextos locais que
escapam às definições do Plano Di-
retor. A esquerda, com sua tradição

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