Viaje Mais - Edição 201 (2018-02)

(Antfer) #1

98 VIAJEMAIS


NA BAGAGEM


As histórias vividas pela redação


ia ser tudo muito sem graça.
— Você deu 300 por
hora na pista alemã?
— Tá louco? Fiquei lá nos
cento e poucos, dirijo mal pra
caramba. Tenho medo.
— Se fosse eu, acelera-
va tudo.
— Então tá. Faz de con-
ta que acredito. Não é você
que tem medo de avião?
— Eu? Bem...

— Me contaram que
você tomou um calmante
antes de entrar no avião e
dormiu assim que chegou
na poltrona. Só que can-
celaram o voo, mandaram
todos descerem e você ficou
lá, dormindo. Te tiraram de
cadeira de rodas, apagadão.
— Não fui eu, não.
— Foi, sim, que eu sei!
— Essa eu nunca tive
coragem de contar.
— Você aí com história

— A gente se mata pelo
leitor. É legal usar as técnicas
literárias em favor da empatia
total com quem acompanha
nossas aventuras.
—Aventura mais ou me-
nos. Fala a verdade: você já
viu algum jornalista atleta,
daqueles que sabe mergu-
lhar, escalar montanhas, pi-
lotar Ferrari em Mônaco, sem
pagar mico?

— Não vem não que
mergulhar eu sei. Fiz cur-
so, tá?! O básico, é verda-
de, mas fiz. Ferrari nunca
pilotei, mas já acelerei um
Porsche por uma autobahn
na Alemanha.
— É a vantagem de ser
jornalista, deixam a gente
fazer todas as loucuras para
depois contar como é.
— Sabe que eu acho
que, se a gente fosse isso
aí, os grandes especialistas,

— Quer dizer que deu
tudo certo na sua viagem?
— Foi. Tudo certinho.
— É mesmo? Coitadi-
nho. Nenhum gafanhoto
para comer, nenhum en-
sopado de cobra, sei lá,
nenhum salto de bungee
jump. Nada disso, nadinha?
E agora?
— Não sei. Estou apa-
vorado. A comida era só
internacional, pratos finos,
bons vinhos, os passeios
tranquilos.
— E você tem 15 páginas
para escrever? Tá ferrado...
— Pois é, boa foi aque-
la matéria da Nova Zelân-
dia, onde eu tive de pular
de uma ponte pendurado
pelo elástico. Pude falar do
coração saindo pela boca.
— Nem me fale. Certa
vez, numa matéria do Egito,
comi ensopado de pombo.
Comi enganado. Quando
descobri, que nojo!
— É, mas tem o que con-
tar. Repórter engajado rela-
ta a experiência, é a moda,
né. Lembra da vez que fui
fazer a matéria do voo de
primeira classe da Etihad e
derrubei todo o vinho que
custava uma fortuna?
— Se lembro! Mas você
deitou e rolou relatando
como era ser um simples jor-
nalista dando pinta de ricaço.
E aquele creme que era para
passar na cara e você comeu?

sobrando e eu sem nada pra
falar. A praia do Caribe era
linda, o serviço 10, a cerve-
ja sempre gelada.
— E o tubarão?
— Que tubarão?
— Lá no Caribe não
tem aqueles mergulhos
com tubarões? Dá um abre
de reportagem ótimo, os
bichões com aqueles olhos
frios, sem piscar, com três
camadas de dentes. É ver e
tremer. Emoções únicas no
texto, o editor adora.
— Será?
— Claro que sim!
— E o medo? Essa é
a graça, passar medo em
nome do leitor.
— Mas, se morder,
quem sai mordido sou eu,
não é o editor nem o lei-
tor. Passei mal com aquele
pombo. Empatia também
tem limites.
— Você quer um bom
texto ou não? Da próxima
vez, já sabe. Dê um sorriso
para os tubarões que as mu-
sas da inspiração vão sorrir
pra você.
— Sei, sei! Aqueles den-
tões, aqueles olhos frios
sem piscar e eu pensando
por que entrei numa rou-
bada dessas...
— Tudo em nome do
leitor, meu caro.
— Garçom, mais uma
cerveja, por favor. Ah, e um
conhaque também.

Que roubada!


POR ROBERTO ARAÚJO

SHUTTERSTOCK
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