DEZEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 21
das Relações Exteriores da Arábia
Saudita elogiou o “plano do século”
elaborado pelo governo de Trump
para a solução da questão palestino-
-israelense,^4 o soberano se apressou
em tranquilizar os palestinos evo-
cando... a iniciativa do rei Abdallah.
Para o velho monarca, trata-se
antes de tudo de manter as aparên-
cias e garantir que essa questão não
agrave uma situação interna já tensa
pelas incertezas sobre sua sucessão e
pelo desejo do príncipe herdeiro de
abalar a ordem estabelecida.^5 No
Twitter, rede social que oferece um
paliativo à ausência de liberdade de
expressão, os sauditas estão dividi-
dos. Se alguns se mostram claramen-
te a favor de uma reaproximação com
Israel, julgando severamente os líde-
res palestinos, outros, ao contrário, a
recusam de forma veemente e exi-
gem a restituição de Jerusalém Orien-
tal aos palestinos. De acordo com o
bilionário israelo-americano Haim
Saban, o próprio “MBS” estaria ciente
dos perigos de uma normalização
que poderia “fazer que ele fosse mor-
to pelo Irã, pelo Catar ou por [seu]
próprio povo”.^6 Isso sem esquecer
que outros membros da família real
poderiam usar esse pretexto para im-
pedi-lo de assumir o trono.
Hostil ao Irã, mas também à con-
fraria da Irmandade Muçulmana,
Mohammed bin Zayed al-Nahyan
(“MBZ”) é a outra locomotiva de nor-
malização com Israel. Mas o prínci-
pe herdeiro e governante de fato dos
Emirados Árabes é menos limitado
que seu homólogo saudita por consi-
derações domésticas. Pouco nume-
rosos, fundidos em uma população
estrangeira que representa 90% dos
6 milhões de habitantes da federa-
ção, seus súditos se acostumaram ao
longo das últimas duas décadas a
uma normalização em pequenos
passos. Nos palácios de Abu Dhabi e
Dubai, joalheiros israelenses manti-
nham discretamente suas lojas. Nas
principais conferências organizadas
nas duas cidades, não era incomum
encontrar acadêmicos israelenses
que haviam vindo como “observado-
res convidados”. Em abril de 2011,
após meses de intenso lobby, Abu
Dhabi acolheu a sede da nova Agên-
cia Internacional de Energias Reno-
váveis (Irena), após se comprometer
a autorizar a abertura de uma repre-
sentação oficial israelense junto a
essa instituição.
Contudo, desde agosto reina o
descontrole. Não passa uma semana
sem que a imprensa anuncie uma re-
união ministerial bilateral ou um
evento que envolva os Emirados e Is-
rael. Aqui, o Emirates Center for Stra-
tegic Studies and Research (Centro
Emirates para Estudos Estratégicos e
Pesquisa – ECSSR) está organizando
uma conferência sobre o progresso
da “paz abraâmica” no Golfo e no
Oriente Médio. Lá, uma agência de
comunicação promoveu em menos
de dois anos um encontro entre mu-
lheres líderes dos dois países – in-
cluindo uma representante de alta
patente do Exército israelense. Em
Dubai, grandes hotéis aguardam an-
siosamente o desembarque de legiões
de turistas israelenses, que em breve
deverão se beneficiar da isenção de
visto. Nessa cidade mercantil, uma
delegação de empresários liderada
por Erel Margalit, um grande nome
do capital de risco israelense, foi rece-
bida com todas as honras. “É como se
apaixonar”, chegou a declarar Yous-
sef Abdulbari, astro apresentador da
Dubai TV, após receber Margalit e fi-
car em êxtase com o aumento do in-
tercâmbio com os israelenses.^7 O idí-
lio é ainda mais envolvente quando se
pensa que a juventude dourada dos
Emirados é fascinada por Tel Aviv,
cujas noites festivas tendem a substi-
tuir as de Beirute ou do Cairo.
E os palestinos em tudo isso?
Aqueles que vivem nos Emirados Ára-
bes Unidos, às vezes desde os anos
1950, são forçados a se manter discre-
tos. Um deles nos disse, sob condição
de anonimato, que pensa em ir morar
no Kuwait, “monarquia que, ao con-
trário das vizinhas, recusa qualquer
relacionamento com Tel Aviv enquan-
to as terras palestinas não forem de-
volvidas”.8 Se as autoridades dos Emi-
rados insistem na ajuda financeira e
humanitária que continuam a conce-
der aos palestinos, em particular para
lutar contra a Covid-19, o discurso é
menos prolixo na questão política.
MANTER AS APARÊNCIAS
Para “MBZ”, uma das contrapartidas
da normalização é o abandono por
Tel Aviv do projeto de anexação da
Cisjordânia, a que o primeiro-minis-
tro israelense Benjamin Netanyahu
responde que está simplesmente
“adiado”. Dessa forma, esse falso
diálogo de surdos, destinado a salvar
as aparências, deve durar enquanto a
Autoridade Palestina, atualmente li-
derada por Mahmoud Abbas, se opu-
ser a uma “paz” pouco constrange-
dora para Israel. Se um líder mais
complacente lhe suceder e concor-
dar em fazer novas concessões, é cer-
to que nenhuma licitação pró-pales-
tina virá dos Emirados. Para Abu
Dhabi, Mohammed Dahlan, ex-líder
do Fatah e ex-chefe da segurança
preventiva em Gaza, é o candidato
ideal. Morando em Dubai, em boas
relações com Abbas, ele não criticou
o acordo entre Emirados Árabes Uni-
dos e Israel. Ele até teria sido um dos
arquitetos dele.
No Bahrein, a normalização apre-
senta uma cara que evoca tanto o ca-
so dos Emirados quanto o da Arábia
Saudita. Como os primeiros, a pe-
quena ilha do Golfo, governada por
uma monarquia sunita, há muito
realizou uma normalização de fato,
tendo até acolhido uma missão is-
raelense não oficial em 2009.^9 Mas a
população, na maioria xiita, é muito
menos condescendente que a dos
Emirados Árabes Unidos. Embora a
repressão feroz ao movimento de
protesto popular de 2011 tenha en-
fraquecido a oposição, esta não desa-
pareceu e, como parte da opinião pú-
blica saudita, foi rápida em condenar
a reaproximação com Israel.
Os dados são totalmente diferen-
tes para o Sudão. Em um contexto de
transição democrática incerta,^10 os
generais no poder têm três priorida-
des: que seu país seja retirado da lista
de apoiadores do terrorismo, que dei-
xe de sofrer sanções internacionais
ligadas em particular aos massacres
que ocorreram em Darfur e que te-
nha acesso a financiamentos inter-
nacionais. A normalização com Israel
garante a Cartum o apoio de Washin-
gton para alcançar esses objetivos,
mas provoca tensões entre os milita-
res e a coalizão de partidos e de orga-
nizações que liderou o protesto con-
tra o regime de Omar al-Bashir em
- Essa coalizão acredita que não
cabe a um governo de transição to-
mar tal decisão. Resta saber até onde
irá a contestação.
*Akram Belkaïd é jornalista do Le Monde
Diplomatique.
1 Ler “Rapprochement calculé avec Israël”
[Aproximação calculada com Israel], Le Mon-
de Diplomatique, maio 2020.
2 Argélia, Egito, Iraque, Jordânia, Kuwait, Líba-
no, Marrocos, Síria e Sudão.
3 Jeffrey Goldberg, “Saudi Crown Prince: Iran’s
supreme leader ‘makes Hitler look good’”
[Príncipe herdeiro saudita: líder supremo do
Irã “faz Hitler parecer bom”], The Atlantic,
Washington, DC, 2 abr. 2018.
4 Ler Alain Gresh, “Israël-Palestine, un plan de
guerre” [Israel-Palestina, um plano de guer-
ra], Le Monde Diplomatique, mar. 2020.
5 Ler Florence Beaugé, “Une libération très cal-
culée pour les Saoudiennes” [Uma liberação
bem calculada para os sauditas], Le Monde
Diplomatique, jun. 2018.
6 Conferência on-line “Israel’s security and pros-
perity in a Biden White House” [Segurança e
prosperidade de Israel em uma Casa Branca de
Biden], Florida Jewish Vote Team, 21 out. 2020.
7 Isabel Kershner, “‘It’s like falling in love’: Israe-
li entrepreneurs welcomed in Dubai” [“É como
se apaixonar”: empreendedores israelenses
bem-vindos em Dubai], The New York Times,
7 nov. 2020.
8 Cf. Mona Farrah, “Les irréductibles Koweï-
tiens rejettent la normalisation avec Israël”
[Os irredutíveis kuwaitianos rejeitam a norma-
lização com Israel], Orient XXI, 13 out. 2020.
Disponível em: https://orientxxi.info.
9 Barak Ravid, “Israel’s secret embassy in Bah-
rain” [Missão secreta de Israel no Bahrein],
Axios, 21 out. 2020. Disponível em: http://www.
axios.com.
10 Ler Gilbert Achcar, “Où va la ‘révolution de
décembre’ au Soudan” [Para onde está indo a
“revolução de dezembro” no Sudão?], Le
Monde Diplomatique, maio 2020.
AMARGURA PALESTINA
POR OLIVIER PIRONET*
N
a Palestina, a reaproximação oficial entre os Emirados Árabes Unidos (EAU), o
Bahrein, Sudão e Israel gerou uma enxurrada de duras críticas. Elas são propor-
cionais ao sentimento de “abandono” experimentado por vários anos. O presidente
da Autoridade Palestina (AP) da Cisjordânia, Mahmoud Abbas, denuncia a “traição”
das duas monarquias do Golfo, às quais ele refuta o direito de “falar em nome do
povo palestino” ao decidir seu destino contra sua vontade. Por sua vez, Jibril Rajoub,
secretário-geral do comitê central da Fatah, o partido de Abbas que forma a espinha
dorsal da AP, lamenta um ato “desonroso e vergonhoso”. Nabil Chaath, líder impor-
tante da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), conselheiro especial de
Abbas e ex-ministro das Relações Exteriores, chama os acordos de normalização de
“facada pelas costas” e acena com a ameaça de uma “Terceira Intifada”. Já o Hamas,
movimento islâmico no poder na Faixa de Gaza, acusa Abu Dhabi e Manama de “ofe-
recer um cheque em branco” a Israel para a continuação da ocupação. Em entrevista
que não passou despercebida, o embaixador da Palestina na França, Salman el-Her-
fi deixa transparecer toda a sua amargura: acredita que os Emirados finalmente
“mostraram sua verdadeira face” e chegaram mesmo a “se tornar mais israelenses
que os israelenses”.^1 Finalmente, os palestinos “condenam” em uníssono o “pecado
político” do Sudão, que por muito tempo defendeu ardorosamente sua causa.
No terreno, o Exército israelense está criando asas. Segundo um relatório da
OLP, entre 15 de setembro (dia da assinatura dos Acordos de Abraham entre Emira-
dos, Bahrein e Israel) e 15 de outubro, ele abriu fogo 240 vezes sobre os territórios
ocupados. Matou dois palestinos e feriu uma centena, prendeu quase quinhentas
pessoas, incluindo crianças, demoliu dezenas de casas e realizou 370 incursões.^2
*Olivier Pironet é jornalista do Le Monde Diplomatique.
1 Cf. Armin Arefi, “L’ambassadeur de Palestine tire à boulets rouges sur les Émi-
rats” [O embaixador palestino atira bolas vermelhas nos Emirados], Le Point,
Paris, 12 out. 2020.
2 “PLO: Israel attacks escalate after normalisation with Arab states” [OLP: os ata-
ques de Israel aumentam após a normalização com os Estados árabes], Middle
East Monitor, 24 out 2020. Disponível em: http://www.middleeastmonitor.com.
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