Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 161 (2020-12)

(Antfer) #1

26 Le Monde Diplomatique Brasil^ DEZEMBRO 2020


UMA MASCOTE ETERNAMENTE ISENTA DE RESPONSABILIDADES


Depois da Escócia, Irlanda do Norte e País de Gales, o


norte da Inglaterra experimenta um movimento político


em favor da independência. Tensões nacionalistas, caos


parlamentar por ocasião do Brexit, fiasco na luta contra a


Covid-19: a tempestade parece estar varrendo tudo no


Reino Unido. Tudo exceto a Coroa, que continua a


proporcionar um senso de coesão à maioria dos britânicos


POR LUCIE ELVEN*


A indestronável


monarquia


britânica


T


endo percorrido as ruas de Lon-
dres em júbilo no dia da coroa-
ção da rainha em 1953, os soció-
logos Michael Young e Edward
Shils qualificaram o evento de “gran-
de ato de comunhão nacional”. Fazia
todo o sentido, escreveram eles, co-
mo “experiência não individual, mas
coletiva”, que unia milhares de famí-
lias em um fervor popular que lem-
brava a celebração da vitória sobre a
Alemanha nazista. O ar vibrava com
o calor humano; até mesmo os bate-
dores de carteira tinham parado de
trabalhar, e reinava um espírito de
comunhão que teria horrorizado
“aqueles que têm o viés racionalista
das pessoas educadas de nosso tem-
po, especialmente aqueles de dispo-
sição política radical ou liberal”.^1
Hoje, enquanto as desigualdades
não param de se aprofundar no Reino
Unido, a monarquia parece ter con-
servado sua popularidade. Quase
dois em cada três britânicos aprovam
sua existência. São apenas 22% a de-
sejar seu desaparecimento, sendo os
mais hostis os escoceses. Paradoxo
surpreendente: quando os tempos
são difíceis, a família real parece ser-
vir de diversão ou consolo. Nas núp-
cias reais dos últimos dez anos, sem-
pre houve um tolo para afirmar que o
moral da nação precisava de um im-
pulso. Como Walter Bagehot escreveu
em 1867 em A Constituição inglesa, as
pessoas se curvam ao “espetáculo
teatral da sociedade”, do qual a ra-
inha é o “ponto culminante”.


O CULTO DA TRADIÇÃO
Elizabeth II viaja pelo país usando as
cores damasco, púrpura ou chartreu-
se para ter maior visibilidade; 30% da
população afirma já tê-la visto ou en-


contrado. Ela vê a tarefa de revigorar
o povo, ainda que de forma breve e li-
mitada, como parte de suas obriga-
ções. “É muito bom se sentir como
uma espécie de esponja”, ela confi-
denciou em 1992, em um documen-
tário da BBC, evocando sua relação
com os súditos. A “esponja” era uma
metáfora para o serviço que ela sen-
tia que deveria prestar a eles, associa-
do a uma imagem de uma soberana
comum e próxima das pessoas.^2 A es-
critora Zadie Smith, em um artigo
para a Vog ue, observa que “a senhora
Windsor é amplamente apreciada
por sua ostentação modelada com
base em gostos emprestados da pe-
quena classe média: cães Corgi, cor-
ridas de cavalos e a novela de TV
EastEnders”.^3
A rainha distribui as honras; é um
dos poucos poderes que lhe restam.
“As pessoas precisam ser encoraja-
das”, observava já em 1992. “O mun-
do seria muito sombrio sem isso.” Os
tapinhas nas costas vêm com o apoio
real às obras de caridade, que sinali-
za uma preferência pela filantropia
em detrimento do serviço público.
Desde a Revolução Gloriosa de 1688-
1689, espera-se que a monarquia se
mantenha afastada da política; seus
direitos, para retomar a fórmula de
Bagehot, são limitados a “ser consul-
tada, encorajar e alertar”. Como re-
sultado, os assuntos nos quais a fa-
mília real se envolve, por mais
políticos que sejam, são facilmente
percebidos como apolíticos.
Quando o príncipe William defen-
de reivindicações caras aos millen-
nials (pessoas nascidas entre meados
dos anos 1980 e os anos 1990) – sobre
saúde mental ou sobre mudanças cli-
máticas, por exemplo –, elas imedia-

tamente se tornam consensuais e en-
tram na categoria das grandes causas,
como a pesquisa sobre o câncer ou o
apoio à Cruz Vermelha. Em outubro
de 2020, contra o pano de fundo de
debates acalorados sobre os legados
da escravidão e do Império, o prínci-
pe Harry, que este ano se distanciou
da família real, falou de seu “desper-
tar” de consciência sobre a questão
do racismo estrutural. A maneira
mais militante e emocional pela qual
sua mãe, Diana Spencer, a famosa La-
dy Di, via seu envolvimento humani-
tário – por exemplo, indo a um hospi-
tal para apertar a mão de um paciente
de aids sob os f lashes de fotógrafos –
repugnava os membros mais velhos
da casa de Windsor.
Frequentemente, a instituição da
família real é usada com fins políticos
na linha de frente das guerras cultu-
rais. O atual primeiro-ministro, Boris
Johnson, foi acusado por seus opo-
nentes de ter “mentido para a rainha”
quando a convidou para pronunciar a
dissolução do Parlamento a fim de ter
rédea solta nas querelas do Brexit, em
agosto de 2019.^4 Durante seu mandato
à frente do Partido Trabalhista, entre
2015 e 2020, Jeremy Corbyn foi conti-
nuamente criticado por sua falta de
deferência para com a rainha, sua re-
cusa em abaixar a cabeça, cantar o
hino nacional ou assistir ao discurso
real na televisão no Natal – uma falta

intolerável de patriotismo. A curiosa
imunidade que protege a família de
Elizabeth de qualquer tentativa de lhe
exigir uma responsabilidade também
se encaixa no reino político: Johnson
zombou da ideia de prestar assistên-
cia às autoridades judiciais america-
nas em sua investigação sobre o prín-
cipe Andrew (suspeito de
cumplicidade nas agressões sexuais
cometidas pelo falecido empresário
Jeffrey Epstein), algo que ele tem o
cuidado de não fazer quando se trata
de Julian Assange.
Voluntariamente centrado na pe-
quena ilha heroica que resistiu aos
alemães e os derrotou na Segunda
Guerra Mundial, o romance patrióti-
co britânico torna-se complicado à
luz dos muitos laços da família real
com os nazistas, que parecem ir além
da crença compartilhada nas hierar-
quias dinásticas. As duas irmãs do
marido da rainha, o príncipe Philip,
radicadas na Alemanha, eram liga-
das ao Partido Nazista, a ponto de
uma delas ter colocado no filho o no-
me de Adolf. Depois de ter abdicado
para se casar com uma norte-ameri-
cana divorciada, Eduardo VIII, tio de
Elizabeth, foi para a Alemanha em
1937, a convite e às custas do Reich; lá
ele conheceu o Führer pessoalmente
em frente a uma fábrica de munições.
As imagens o mostram no Castelo de
Balmoral, na Escócia, uma residência

.
Free download pdf