Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 161 (2020-12)

(Antfer) #1

36 Le Monde Diplomatique Brasil^ DEZEMBRO 2020


A tirania da benevolência


A gestão da crise sanitária apoia-se na obrigação de cada um se proteger e proteger os demais, especialmente
os “mais vulneráveis”. O governo francês apela ao altruísmo e, em caso de negligência, a punições. Mas esse
chamado à responsabilidade revela uma incitação virtuosa ou um empreendimento de redefinição do cidadão?

POR EVELYNE PIEILLER*

“I


nformação coronavírus: va-
mos nos proteger uns aos ou-
tros.” A frase, que evoca ao
mesmo tempo um preceito
bíblico e o slogan de uma companhia
de seguros, parece revelar uma ver-
dade evidente, essas sentenças cheias
de bom senso espontâneo que não
podem ser questionadas. Parece de
fato difícil responder com um “por
quê?” tempestuoso. Quem poderia se
opor a essa magnética incitação, sa-
bendo-se que não cumpri-la implica
colocar os outros em perigo? Só resta
determinar quais regras devemos se-
guir para nos proteger uns aos outros:
ainda que se possa debater sobre este
ou aquele dispositivo, a afirmação
inicial é evidente. No entanto, como
frequentemente é o caso das verdades
evidentes, essa ordem não tem nada
de natural; ela tem a ver com a cons-
trução de um conjunto de valores e
com uma concepção do humano.
De modo f lagrante, o léxico e as
práticas do governo na gestão da crise
sanitária permitiram a entrada em
cena da “filosofia do care”, promovida
agora por Martine Aubry, prefeita de
Lille.^1 Um tanto zombada até pouco
tempo atrás, a noção hoje é um furor.
Emmanuel Macron batizou de “Care”
(Comitê Análise Pesquisa e Especiali-
zação, na sigla em francês) a instância
encarregada de “guiar a decisão go-
vernamental nas áreas médicas e so-
ciais”; o ministro da Saúde, Olivier
Véran, o saudou, no Journal du
Dimanche (16 maio 2020), como um
“conceito muito moderno”. O termo
inglês care significa “cuidado” e tam-
bém “solicitude” (os apreciadores de
ficções anglo-saxãs conhecem o in-
cansável “Take care” com o qual os
personagens se despedem, com um ar
geralmente preocupado). Um pensa-
mento do care foi elaborado primeiro
por feministas norte-americanas, a
filósofa Carol Gilligan e a cientista
política Joan Tronto, que, para além
de uma reabilitação das profissões do
cuidado e das pessoas que trabalham
com isso, tem por objetivo, mais radi-
calmente, introduzir questões éticas
na política. Trata-se de fato de colocar
“a vulnerabilidade no coração da mo-
ral, em vez de valores como a autono-
mia, a imparcialidade, a igualdade”.^2

Como sublinha de maneira escla-
recedora obra recente assinada por
uma ex-ministra socialista e uma fi-
lósofa que fez parte da equipe da
campanha presidencial de Benoît
Hamon, essa vontade se apoia na
convicção de que “vivemos no mito
de nossa autonomia e de nossa inde-
pendência – valores da sociedade mo-
derna desde o Iluminismo”.^3 A afir-
mação merece que paremos e nos
concentremos, sob a cobertura mo-
ral, no sentido propriamente político

do care. Parece um belo truque de
mágica: confundir “autonomia” sim-
plesmente, noção impressionante-
mente vaga, e “autonomia da razão”,
que, construída ao longo de um gran-
de trabalho de emancipação dos pre-
conceitos, possibilita que se pense li-
vremente, que se funde um
julgamento, e por meio disso, permite
o estatuto de cidadão. É essa autono-
mia... da razão, projeto do Iluminis-
mo, mas também de René Descartes,
de Baruch Spinoza, de Emmanuel

Kant, que é deslegitimada como “va-
lor central” pela “antropologia da
vulnerabilidade”.

UMA “REGRA DE VIDA”
PARA MACRON
Característica do pensamento do ca-
re,^4 o termo “vulnerável” se tornou,
no contexto da pandemia, obsessivo.
Mesmo que seja claro que ele permite
evitar a palavra “velhos”, seu uso não
testemunha unicamente certa deli-
cadeza. Para o dicionário Larousse, a

SUCESSO DE UMA NOÇÃO MENOS INOCENTE DO QUE PARECE


© Winny Tapajós

.
Free download pdf