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RUI OLIVEIRA
ADMINISTRADOR INESC TEC
RICARDO LAFUENTE
VICE-PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO D
PRECISAMOS DE UMA APP
DE RASTREAMENTO DE CONTACTOS?
RUI OLIVEIRA - Numa situação de pandemia,
as cadeias de contacto são quebradas a
partir do momento em que sabemos que
alguém foi infetado. É o protocolo em todas
as epidemias e pandemias que se faça
o rastreio dos contactos dessa pessoa.
Uma ferramenta como esta, que permite o
rastreio digital numa altura em que todos
temos um telemóvel, parece ser de facto
um auxiliar. Não é um substituto, é um
complemento para o protocolo comum
das doenças. Quando nos começamos a
cruzar com um cada vez maior número de
pessoas, esta ferramenta começa a mostrar
a sua utilidade. A aplicação não dá garantia
absolutamente nenhuma, nem a aplicação
sugere que nos desconfinemos cada vez
mais, de todo. A aplicação aparece como
uma medida de mitigação.
RICARDO LAFUENTE - Certamente que não
precisamos. A questão é se irá ajudar. Não
existe nenhuma situação passada onde se
tenha usado um mecanismo de rastreamento
com os smartphones. Não existe uma
prova concreta da sua eficácia e isso
é muito importante vincar. Se vamos
fazer só a análise de benefício, em vez de
custo-benefício, então não há forma
de recusar câmaras dentro de casa ou
drones nas ruas. Estamos a medir face
aos custos, neste caso face aos custos
sociais. Recusamos a ideia de que qualquer
benefício é bom e que temos de arriscar no
desconhecido. O uso será exclusivamente
voluntário, mas lá fora, apesar de haver apps
de uso voluntário, várias entidades privadas
decidiram que quem não tem a app não entra.
Estafetas de entregas de refeições
se não têm a app não podem ir trabalhar.
É isso que nos preocupa, situações de
discriminação, no meio laboral, que vão
aparecer. Por sermos peritos e especialistas
em tecnologias, sabemos que há meios em
que não é necessário atirar tecnologia para
o problema.
QUE VANTAGENS E PROBLEMAS RELATIVAMENTE
À UTILIZAÇÃO DA INTERFACE GOOGLE-APPLE?
RO - A primeira vantagem tem que ver com o
facto de esta funcionalidade passar a estar
em todos os sistemas operativos móveis,
qualquer telemóvel iOS ou Android tem a
GAEN, portanto, há aqui uma distribuição por
todo o mundo. Essa utilização tecnicamente
só trouxe vantagens. Por outro lado, a
utilização trouxe regras muito estritas por
parte da Google e da Apple para quem
as usasse. E quando a Apple e a Google
entraram no jogo, obrigou-nos e a outros
países a refazer parte da aplicação.
RL - Há informações que vão parar à Apple e
à Google. Mesmo não vertendo informação
privada das pessoas quanto ao estado de
saúde, não há mais garantias, o código-fonte
não foi publicado. A Google vai ficar a saber
se o utilizador instalou imediatamente ou se
esperou para instalar. Isso vai ser cruzado
com perfis individuais, para empresas de
venda de máscaras equilibrarem a campanha
publicitária para fazer direcionamento. [Sem
a GAEN] Sentir-me-ia mais confortável
no meio de um grande desconforto. O
problema é que é a única forma de funcionar,
porque controlam os sistemas operativos.
Precisarmos de pedir autorização a
estas duas grandes empresas e torná-las
decisores numa questão de saúde pública é
politicamente muito pouco sensato.
OS FALSOS POSITIVOS – DIZER QUE ESTIVE EXPOSTO
A UM INFETADO QUANDO NÃO ESTIVE, POR HAVER
UMA PAREDE PELO MEIO, P. EX. – SÃO POSSÍVEIS?
RO - Associar a aplicação a falsos positivos
ou falsos negativos é lançar confusão. Quem
pode dar um falso positivo ou negativo é
o teste à Covid-19. Quando eu recebo um
sinal Bluetooth Low Energy (BLE), tenho uma
informação, diria bastante boa, de qual foi
a potência com que foi emitido e a potência
com que chegou. Indiretamente meço a
distância entre os telemóveis. Para os nossos
propósitos estamos com uma precisão de
80%, o que é muitíssimo bom. Depende da
humidade, da temperatura, depende de mil
e uma coisas e nem cheguei às paredes.
Eu não quero saber se o seu telemóvel
está a quatro ou cinco metros, quero saber
se está a menos de dois metros. A potência
do sinal tem que ser muito, muito próxima
da potência com que foi emitido, tem que ter
tido muito pouca atenuação. Isto quer
dizer que se houver uma parede entre
nós, nunca vou achar que está a menos
de dois metros de mim.
RL - O Bluetooth atravessa paredes, não é
feito para medir distâncias, não é fiável
para registar contactos possíveis ou não.
Num engarrafamento, estou parado um
quarto de hora com um carro ao lado – vai
registar um contacto, provavelmente
estou a dois metros do outro carro. Em
restaurantes com acrílico igual. Há vários
exemplos onde se podem verificar falsos
positivos. Estamos convencidos de que vai
haver imensos falsos positivos.
USAR A APP PODE CAUSAR UMA
FALSA SENSAÇÃO DE SEGURANÇA?
RO - Esta aplicação não nos dá informação
em tempo real do que está à nossa volta.
Esta aplicação não é, por exemplo, uma
aplicação em que se alguém estiver a dois
metros de mim apita. Esta app, por si, não
nos deve dar em tempo real segurança
nenhuma, absolutamente nenhuma. Se não
respeitar as outras regras que temos, não é a
aplicação que vai fazer rigorosamente nada.
A aplicação avisa-me de um comportamento
descuidado que eu posso ter tido. A app
não funciona como a máscara ou a etiqueta
respiratória – se tiver que escolher entre a
máscara ou a app, escolhia a máscara.
RL - A aplicação vai criar ansiedade pela
suspeita de estarmos infetados e há o
cansaço que as pessoas vão sentir quando
houver falsos positivos. Toda esta estrutura
que a app tenta criar de prevenção e rastreio,
apenas funciona com o uso perfeito da
adoção da aplicação. O maior erro que está
a ser cometido é tratar isto apenas como um
assunto técnico – também tem efeitos sociais.
O CÓDIGO-FONTE DA APLICAÇÃO
JÁ DEVIA TER SIDO DISPONIBILIZADO?
RO - O código será disponibilizado
imediatamente antes de as aplicações serem
disponibilizadas ao público. Porquê? Não é
do interesse de absolutamente ninguém ter
acesso a uma aplicação que ainda não está
na sua versão de disponibilização pública.
Porque por definição, se ainda não está em
versão pública, há coisas que sabemos que
têm de ser melhoradas ou corrigidas, que
só iriam causar entropia nesse escrutínio.
Mas parece-me que há aqui uma vertente de
curiosidade de alguma opinião pública que
não tem nada a ver com escrutínio público,
tem a ver com curiosidade. É legítima, mas
só causa entropia neste momento.
RL - O projeto está a ser desenvolvido
com dinheiros públicos. O código-fonte na
Alemanha foi publicado duas semanas antes.
Não existe razão para essa reserva [de ainda
não ter sido disponibilizado]. Parece desculpa
de mau pagador. O projeto só beneficiaria
da atenção dos cidadãos e especialistas.
Por isso, recusamos qualquer argumento no
fechamento do código. Isto é uma opacidade
intolerável. Isto é uma aplicação muito
sensível, não pode haver margem para isso.
Seria absolutamente natural partilhar o
código-fonte, em desenvolvimento ou não.
Há imensa gente que está cheia de vontade
de ver e de descobrir os erros.