National Geographic - Portugal - Edição 240 (2021-03)

(Antfer) #1

ZINIO


MARÇO | EDITORIAL

FOTOGRAFIA DE JOÃO RODRIGUES

Uma história contada


por um peixe notável


O INCRÍVEL
CICLO DA
SARDINHA

A bordo do Poema do Mar,
Ricardo Serrão Santos observa,
com inquestionável prazer, a
demonstração do mestre pes-
cador de que as capturas na
costa algarvia têm revelado
uma recuperação dos stocks
da sardinha.

NÃO É MUITO COMUM EM PORTUGAL
um ministro envolver-se directamente
nas fainas de pesca para sentir e com-
preender o engenho dos homens e das
mulheres que as praticam. Numa noite
do Verão passado, entre os vários tripu-
lantes da traineira Poema do Mar que
largou do porto de pesca de Quarteira
e saiu para o mar, contava-se Ricardo
Serrão Santos, o ministro do Mar que
quis ver in loco um problema que come-
çou por estudar na Universidade dos
Açores, onde dirigiu o Departamento
de Oceanografia e Pescas, sobre o qual
ajudou a definir legislação comunitária
no Parlamento Europeu como deputado
e que procura agora soluções capazes
de conciliar os interesses das muitas
partes interessadas.
O dilema da sardinha é uma história
cultural em primeiro lugar. Os portu-
gueses estão entre os maiores consu-
midores de peixe do mundo, com uma
média anual de mais de 57kg de peixe e
outros recursos consumidos por pessoa.
A sardinha é uma componente impor-
tante desse ritual e é-o há séculos. Dos
mosaicos romanos de Milreu às fábricas
de pescado de Tróia, passando pelas
medidas pombalinas de protecção deste
recurso marinho, há uma longa relação
dos habitantes deste território com o
saboroso peixe longilíneo.
A história, porém, também é ambien-
tal. A captura continuada e em massa
na transição para o século XXI colocou
sob pressão as populações desta espé-
cie. Na década passada, soaram alarmes
nos gabinetes de cientistas: existia o
risco real de a sardinha se tornar uma
reminiscência de outros tempos, um
menu para dias especiais, dada a sofre-
guidão com que o recurso estava a ser
capturado. Foram impostas quotas e
períodos de defeso e foram definidos

santuários para preservar a espécie em
fases decisivas da sua vida, salvaguar-
dando os stocks.
Essas medidas conduziram ao
terceiro vector desta história, bem
explícito para o ministro do Mar no
convés do Poema do Mar naquela noite.
Segundo a última edição das Estatísti-
cas da Pesca do Instituto Nacional de
Estatística, mais de 13 mil portugueses
estão empregados na pesca, depen-
dendo em muitas circunstâncias da
abundância de sardinha capturada.
Colocando a ciência ao sabor da
conservação tem sido possível conci-
liar estes interesses e os indicadores de
recuperação da espécie são inegáveis.
Será preciso gerir os stocks como uma
barragem, ora abrindo as comportas,
ora fechando face aos sinais de alarme.
O dilema é, afinal, uma lição para todas
as áreas da vida política. — GPR

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