Revista 3ª edição

(Anita Santana) #1

Avessos


Tenho que confessar!
Sou dona de casa como muitas
mulheres-mães que conheço e
desconheço. Mulheres que mesmo
independente financeiramente,
além dos Trabalhos externos,
ainda se ocupam com “afazeres”
domésticos. Afazeres que deviam
ser Trabalho, com “t” maiúsculo”,
e contar para aposentadoria.
Uma das muitas
funções que o Trabalho doméstico
exige é a rotina de visitar o
supermercado pelo menos uma
vez ao mês, por essas bandas de
cá, no Extremo Sul baiano, o
intervalo tem sido menor. Os
grãos estragam mais rápido, não
sei o porquê. Já colocaram a culpa
na umidade e já me disseram que
os piores grãos são destinados
para cá... essa última opção achei
meio estranha, talvez mania de
perseguição, mas havia acabado
de chegar na cidade, não
questionei. De qualquer forma
sigo, pelo menos três vezes ao
mês, para meu destino doméstico.
Dia desses, em meu
passeio quase semanal pelo
supermercado tive o que Freud
chamaria de ataque de histeria,
mesmo que contido foi um, ainda
porque sou mulher e segundo o
que contam por aí essa roupa me
cai bem.


O susto, seguido das
interrogações do que fazer com o
preço do arroz me deixaram
perturbada. Talvez menos por
mim, e por isso assusta. Nessas
horas eu entendo porque o Brasil
é um dos países que mais
consome miojo no mundo, uma
refeição por menos de 1 real.
Imbatível até para os famosos
restaurantes populares.
A falta de ar que o
preço do arroz me causa
transborda na beira, beira-estrada,
beira-da-sociedade, beira-da-
vida... Beiradeiro que exclama ao
ver arroz na cesta básica doada:
“Que chique!”. Gente-beiradeira
que muitos esquecem que é gente.
Gente que vive em terras que não
são delas, na beira da BR-101, no
avesso da vida, sem água, sem
luz, sem banheiro e agora sem
arroz também
Desde quando o arroz
virou chique
Desde quando?
Desde sempre ou
enquanto nós, gente-que-acha-
que-pode, continuarmos a
comprar calados, cozinhar
calados, comer calados... e nesse
ciclo vicioso do silêncio
silenciamos vidas que não
aprendemos a ouvir, que não
podem gritar porque estão muito a
beira para serem ouvidas.
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