Conhecimento Prático Língua Portuguesa e Literatura - Edição 77 (2019-06)

(Antfer) #1
LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 21

Resgate


“Não espere de
Lima Barreto uma
literatura fácil,
palatável. Enquanto
seu contemporâneo, o
enorme Machado de
Assis, também negro e
de origem humilde, era
aclamado pelos críticos
por sua literatura
elegante e dentro das
normas, Lima, com
sua escrita à flor da
pele negra, com seu
vocabulário das ruas,
incomodava”

Recordações do escrivão Isaías Caminha, seu primeiro livro,
publicado em 1909, já dizia a que vinha. Ácido, não fazia con-
cessões: atacava a sociedade carioca, e nem mesmo os manda-
-chuvas do jornalismo foram poupados, a ponto de O Jornal do
Commercio, o mais influente da época, proibir que se escrevesse
uma linha a seu respeito. Em pouco tempo, toda a imprensa
seguia o ditame. Portanto, Lima viu-se com o livro embaixo do
braço e sem divulgação. Apenas José Veríssimo, um dos maiores
críticos e historiadores da literatura brasileira, debulhou-se em
elogios para Recordações... Lima Barreto foi fino e retribuiu a
gentileza indo visitá-lo em sua residência.
Sua obra mais conhecida – e hoje admirada pelos estudiosos
–, Triste Fim de Policarpo Quaresma, saiu em 1911. Mas não ha-
via quem quisesse arriscar a editá-lo, fato que só aconteceu em


  1. E dessa vez – talvez graças aos esforços de José Veríssimo



  • foi bem recebido pela crítica.
    O romance foi publicado inicialmente em folhetim pelo pró-
    prio Jornal do Commercio, que havia batido a porta em sua cara,
    anos antes. O protagonista de Triste Fim... é o retrato de um na-
    cionalismo patético e ufanista, ao qual Lima Barreto se opunha
    veementemente. A história traz uma crítica mordaz à perversão
    dos ideais republicanos pelos militares e grandes fazendeiros. O
    maior atingido por esse livro foi o presidente Floriano Peixoto.
    O nacionalismo do major Policarpo Quaresma deságua em
    grande confusão, quando ele é condenado por traição à pátria,
    crime que ele não cometeu. O subsecretário do Arsenal de
    Guerra, nacionalista até a raiz dos cabelos, começa a se inte-
    ressar por tudo que acha genuinamente brasileiro: tocar violão,
    instrumento marginalizado no fim do século XIX, aprende tupi-
    -guarani, passa a estudar folclore, usos e costumes dos índios. O
    tupi-guarani o fascina tanto que o subsecretário envia um reque-
    rimento à Câmara solicitando que a língua indígena passe a ser
    oficial no Brasil. É considerado louco, e para em um manicômio.
    O mesmo acontece com Lima Barreto. Nem mesmo a boa re-
    cepção da crítica e público o tiram do atoleiro em que se meteu:
    além das dificuldades financeiras, o escritor estava bebendo
    cada vez mais. E viver de literatura somente nunca foi fácil por
    aqui: Em 1912 foram lançados em folhetim: O Chamisco ou
    O Querido das Mulheres, Entra Senhórr! e no final do ano As
    Aventuras do Doutor Bogóloff. Para comer, pagar seu aluguel e
    a conta do bar, trabalhava como amanuense, na Secretaria da
    Guerra, algo como os escreventes de hoje. Já não estava bem.
    Ácido, teria proferido: “O Brasil não tem povo, tem público”.
    Em 1914, começa a ter alucinações. É quando o rebelde acaba
    internado no manicômio pela primeira vez. Nuna e Ninfa foi escri-


to logo após Lima ter saído do hospício, no final daquele ano, e
publicado pelo jornal A noite, também como folhetim, entre mar-
ço e julho de 1915. No seu Diário, no começo de 1917, ele relata
que está novamente tendo problemas com a bebida. É internado
no Hospital Central do Exército devido a contusões obtidas por
causa das alucinações e, em 1919, já aposentado do funcionalis-
mo público, volta para o Hospital Nacional dos Alienados, com
o mesmo diagnóstico de alcoólico (alcoólatra na época). Dessa
vez, suas experiências rederam um retrato ácido e cru sobre as
instituições psiquiátricas no Brasil, o livro Cemitério dos Vivos,
publicado em 1920.
Em 1922, ano em que as artes no Brasil colocaram tudo de
cabeça para baixo, Affonso de Henriques de Lima Barreto morre.
Fim do mulato carioca, como era chamado, defensor “das gen-
tes” dos subúrbios, que deixou gravado em seus Diário: “É difícil
não nascer branco” e “A raça para os brancos é conceito, para os
negros pré-conceito”.
É preciso resgatá-lo para sempre.

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