Conhecimento Prático Língua Portuguesa e Literatura - Edição 77 (2019-06)

(Antfer) #1
52 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA

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JOHN KEATS
( 1795 - 1821 )
Foi o último dos
poetas românticos
da Inglaterra, morto
aos 25 anos.

ANTONIN MARIA
JOSEPH ARTAUD
( 1896 - 1948 )
Foi poeta, ator,
escritor, dramaturgo,
roteirista e diretor
de teatro francês
de aspirações
anarquistas.

CARLOS GARDEL
( 1890 - 1935 )
Foi o mais famoso
dos cantores de
tango da história.

SOBRE A AUTORA
JUSSARA SARAIBA
é jornalista e contadora
de histórias.

REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BORGES, Jorge Luis. Ficções.
São Paulo: Companhia das
Letras, 2009.
CORTAZAR, Julio. Bestiario.
15 ed. Buenos Aires:
Sudamericana, 1974.
CORTAZAR, Julio. O Jogo
da Amarelinha. São Paulo:
Companhia das Letras, 2019.
TODOROV, Tzvetan. Introdução
à literatura fantástica. 3. ed.
São Paulo: Perspectiva, 2007.
YURKIEVICH, Saúl (2004). Julio
Cortázar, mundos y modos.
Madrid: Edhasa, 2004.

DENÚNCIA PERFEITA
E DESESPERADA
As novas gerações andam descobrindo Julio Cortázar e seu
teor fantástico ou surreal. O Jogo da Amarelinha – Rayuela, no
original, publicado em 1963 –, lançado agora pela Companhia
das Letras em edição esmerada, a nova casa de Cortázar por essas
paragens, pode ser entendido também como uma linguagem poética
pensada, experimentada e multifacetada. O romance, ou melhor, sua
audácia, pode ter sido mal interpretada. O que sempre vem à tona, nas
análises sobre essa obra, é que Cortázar teria dado ao leitor o direito de
escolher o caminho que lhe agradasse: ler apenas a intriga ou entremeá-la
às digressões e aos comentários. Opção errada. O que Cortázar faz não passa
de provocação. Ali se ironizava, e ainda se ironiza, o leitor preguiçoso ou limi-
tado, o que só se interessa pela história, pela dimensão factual. Ali se criticava
a literatura convencional, que ainda impera hoje, tão apegada ao regime da narra-
ção fácil e clara, ignorante de que a evolução das formas já há muito a fuzilou. O
autor, em O Jogo da Amarelinha, utiliza a personagem de Morelli para desenvolver
algumas ideias sobre o romance e a teoria do romance. Esta personagem fez a dis-
tinção entre "leitor feminino" por oposição a bom leitor ou leitor cúmplice. O bom
leitor é aquele que se compromete com a obra, que arrisca e se torna cúmplice e
que toma para si as situações do romance e dos personagens.
O próprio Cortázar disse, como em Julio Cortázar: mundos y modos: “Me junto aos
poucos críticos que quiseram ver em Rayela a denúncia imperfeita e desesperada
do establishment das letras”. Cortázar sempre manteve a sua crítica ao presente
e à forma como a política é conduzida. As suas denúncias são os seus contos e os
seus romances, porque eles existem.

© WILLIAM HILTON - DOMÍNIO PÚBLICO / COMMONS.WIKIMEDIA.ORG 5

mento da autoridade, a sexualidade desvelada,
a ebulição cultural das vanguardas traduzem-
-se no grande segredo. O jogo em questão é o
jogo do acaso e da aleatoriedade. No passeio de
OLIVEIRA 3 pelos caminhos da loucura e da de-
gradação, o que se revela é algo diferente, como
diz BEATRIZ SARLO 4 : “o sem sentido e o absurdo
que corroem toda pretensão de construir sen-
tidos plenos”.
Já o romance Livro de Manuel, o último pu-
blicado em vida, relata as situações de um gru-
po de jovens latino-americanos que estão em
Paris por razões que os associam a problemas
políticos nos seus países de origem. Juntos for-
mam a Joda, um grupo revolucionário pouco
convencional e contraditório que procura cau-
sar distúrbios e alguns delitos contra o status
político, designados por microagitaciones. Essa
obra foi escrita entre 1970 e 1972 e publicada em


  1. Os episódios do “Maio de 68” ainda esta-
    vam bem presentes, e as várias ditaduras milita-
    res instaladas na América Latina, marcadas no-


meadamente pelas notícias de tortura de presos
políticos que apareciam da Argentina, levaram
Julio Cortázar a passar, segundo o próprio, de
“um mundo esterilizante e sobretudo excessiva-
mente individualista a uma consciência que po-
demos chamar histórica”, como disse em uma
de suas aulas, as famosas Clases de Literatura.
Sua extraordinária contribuição pessoal à es-
crita recai sobre a conquista verbal da realidade.
Desde o começo, em seus ensaios, essa capacida-
de de aliar à potência crítica vigor estético, exu-
berância linguística a serviço do humor e da iro-
nia, faz um convite à cumplicidade. Insinuava-se
também o virtuosismo, o desembaraço de seus
pensamentos quase erráticos, saltando da poesia
de KEATS 5 ao suicídio de ARTAUD 6 e até aos tangos
de GARDEL 7 , enriquecendo cada assunto com inú-
meras metáforas e anedotas de um gato chama-
do Adorno, em homenagem ao filósofo de mes-
mo nome. Mais que para o raciocínio lógico, seu
gosto parecia derivar para a associação insólita.
E iluminadora.

LITERATURA ESTRANGEIRA / Realismo fantástico


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