JL / 19 de junho a 2 de julho de 2019 • jornaldeletros.pt
CINEMA
Manuel Halpern
Rita Nunes-
Perfis falsos e corações partidos
e! Em 1997, quando realizou a
sua primeira curta, foi apontada
com uma das grandes promessas
do cinema português. Só que
o sempre complicado meio da
produção cinematográfica em
Portugal pregou -lhe algumas
partidas e a promessa foi sendo
adiada. Rita Nunes fez várias
curtas, alguns documentários,
telefilmes e publicidade. Até
que, duas décadas depois de
Menos 9, chega finalmente às
salas, no dia 27 , a sua primeira
longa metragens, Linhas Tortas.
Produzido por Paulo Branco,
o filme tem uma refrescante
pulsação contemporânea, numa
Lisboa que nos é familiar.
Jornal de Letras: Porque demorou
tanto tempo a realizar uma
primeira longa metragem?
Rita Nunes: Há muitas razões.
Comecei bastante cedo. Fiz
uma curta em 1997, que ganhou
alguns prémios. Depois tive
que conciliar com a publicidade
e outras áreas paralelas ao
cinema, para conseguir
sobreviver. Contudo, ainda
realizei curtas e documentários,
sem grande relevância, além de
um telefilme, produzido pelo
Paulo Branco. Fui concorrendo
ao ICA, mas sem nunca ter _
apoio. Fiquei desiludida com o
processo de seleção em Portugal.
Segui com a minha vida. Em
2013 , resolvi sair da publicidade
e tentar fazer a primeira longa.
Falei com a Carmo Afonso,
que escreveu o argumento. O
processo de produção arrastou-
se e o filme acabou por ser
rodado em 2017 e concluído no
verão de 2018.
Linhas Torta é um filme com uma
intriga muito forte,que parte das
redes sociais. Foi essa a premissa?
O twitter é o pano de fundo que
serve para ligar as personagens.
Antes existiam as cartas e
correspondência anónima.
Claro que agora temos a
contemporaneidade com as redes
sociais e tal espoleta o arranque
da história. Mas, a partir de certa
altura, o filme passa a falar mais
sobre outras coisas que não as
redes sociais. A história parte
de um epi~ódio real, da própria
Carmo, que se correspondia com
alguém que usav a o nome de uma
personagem histórica, como o
Rasputine.
Nos encontros 'virtuais' nas redes
sociais coloca-se sempre a questão
do choque com a realidade,
quando as pessoas Onalmente se
enconttam. Mas aqui não é o perfil
que é falso, há antes um falso que
se apodera do perfil ...
É uma questão que também
aconteceu na história real da
Carmo. Às tantas, ela não sabia se
o perfil era gerido por apenas uma
pessoa, ou se havia mais alguém
com acesso à conta. A coisa é
obscura, nunca se sabe o que está
do lado de lá.
Apesar de alguns diálogos
serem pouco realistas, o 8lme
tem esse pulsar contempor.\neo
que o torna muito acessível.
A ideia é chegar a um público
vasto?
Claro, quanto mais vasto melhor.
Acho interessante quando se
constroem várias camadas, o
que permite uma leitura mais
A vida por um twit
et Entra-se no metro, sente-
se a cidade, a intriga cose-se
através das redes sociais. É raro
no cinema português sentir-
se de forma tão explícita a
contemporaneidade. Esse é
o primeiro mérito de Linhas
Tortas, a longa- metragem de
estreia de Rita Nunes, uma
história de amor no twitter.
Talvez nesse pulsar moderno
ainda não estejam fiocados as
mudanças recentes da cidade
gentrificada, mas ainda assim o
filme é refrescante na ousadia de
mostrar os dias de hoje. Outro
mérito é, sem dúvida, o desenho
edipiano do argumento, uma
história no sentido clássico, onde
as peripécia se acumulam e se
desfazem. Aqui há realmente
uma história que se conta. E
uma reflexão sobre() amor e
o relacionamento em tempos
de enganos fáceis. Centra- se
em duas personagens, António
(Américo Silva) um cronista
influente, da velha guarda,
que se diverte com tiradas
espirituosas no twitter, onde
assina Rasputine. E Luísa (Joana
Ribeiro) uma jovem atriz, que
se deixa seduzir pela escrita do
desconhecido, apesar dos avisos
da amiga, que lhe diz que ele
deve ser "velho, casado, acamado
ou as três coisas". Há assim um
contraponto de um amor físico
e de um outro que se confunde
com uma admiração intelectual.
Rita Nunes constrói muito bem
as peripécias à volta, para, não
só, celebrar a irracionalidade
do amor, como para o tomar
absolutamente irrealizável.
A verdadeira trama está na
passagem das redes sociais
para a vida real. Enquanto nas
primeiras há algo que se edifica
artificialmente, na segunda
tudo se desfaz. O desafio está
na passagem, na conciliação
verosímil dos dois mundos.
Apesar dos excelentes atores,
Linhas Tortas não ficará como
um obra maior do cinema
portuguêsrecente.Contudo
deixa preciosas indicações de
uma realizadora que se estreia
nas longas- metragens e a quem,
apesar da sua vasta experiência
noutros campos, não têm sido
dadas muitas oportunidades.
ARTES • 21
Rita Nunes Duas décadas depois de Menos 9 a primeira
longa de flcçio
superficial ou extrair outros
significados de acordo com as
referências de cada um.
Há uma peça de teatro encenada
dentro do ftlme. Ficamos cheios de
vontade de assistir ao espetáculo
completo. Que peça é essa?
Foi encenada há pouco ... É uma
peça do José Maria Vieira Mendes.
Na preparação do filme, a partir
do momento em que decidimos
que a protagonista (LUísa) seria
atriz, precisávamos de uma peça
de teatro. A escolha era muito
importante, para dar ao filme
uma outra camada. Pedi ajuda ao
Jorge Silva Melo, que me remeteu
para várias peças. Uma delas
era do José Maria Vieira Mendes.
Depois falei com o autor e acabei
por chegar a este outro texto
chamado Blilingue. A peça é feita
para quatro atores, designados por
letras, no filme só aparecem dois.
Quis criar um momento em que se
falasse de outras coisas que nada
têm a ver com a intriga do filme.
Mas acabam por ter alguma
coisa a ver, fala-se de
contemporaneidade, por
exemplo ...
Pois tem e não tem. É algo que
descola, quem quiser pode
descobrir ligações, mas não é feito
par 'tal.
O filme coloca aquela relação
amorosa num nível altíssimo
de impossibilidade, para depois
desfazer tudo. É um grande
ttabalho de argumento·. Demorou
muito a ser escrito?
Foi mais do que um ano de
escrita e rescrita. A partir do
momento em que o filme foi
interrompido, questionei-me
se fazia sentir prosseguir com
aquela história. Tinha perdido
um pouco o estímulo. Então,
quis voltar a construir o puzzle
para tornar o filme mais
interessante. Cl~ro quer se o
tivesse filmado agora, também
seria um filme diferente.
Filmar a contemporaneidade
envolve sempre riscos, até porque
não há uma distância que permita
um olhar mais consciente da
época. Assumiu esse risco?
Não há nada a fazer, temos
_que assumir o risco, o seu
tempo. O filme sofre dessa
contemporaneidade. Mas eu sou
muito pelo aqui e agora.
Como escolheu os atores?
No processo inicial em 2016 houve
uma escolha feita, em parte,
via casting. Depois o processo
foi repetido. Tinha acabado de
trabalhar com a Joana Ribeiro numa
telenovela. e achei que ela tinha o
perfil exato para a personagem. O
Américo Silva já gostava muito de o
ver em teatro, e achei interessante
colocá-lo num registo düerente dos
Artistas Unidos.
E agora? Para quando um próximo
filme
A relação que tenho com o
cinema é de um tal respeito que
não aceito a possibilidade de
fazer um outro tipo de cinema,
para que possa viver dele. Quero
fazer mais filmes, e filmes
melhores. Este filme está ainda
muito longe daquilo que desejo.
Tudo vai depender muito das
oportunidades. Não procuro a
minha subsistência no cinema.
Dito isto ... Tem algum projeto em
mãos?
Tenho um projeto grande ... Mas
não tenho tido tempo para o
desenvolver, porque têm surgido
muitas outras coisas. Hei de parar
aí uns três meses para me dedicar
a tempo inteiro, trabalhando
sempre em parceria. Em todas
as fases gosto de trabalhar em
diálogo com alguém. Quem sabe,
se-tiver uma longevidade como a
do Manoel Oliveira poderei ainda
fazer alguma coisa ... Aos 20 e
poucos anos tinha muita pre:>sa.
Mas depois tive que me pacificar
perante essa impossibilidade ... E
agora vivo bem com isso. JL