I'
28 · IDEIAS
HETERODOXIAS POLÍTICAS
André Freire
jornaldeletras.pt • 19 de junho a 2 de julho de 2019 / JL
O ciclo eleitoral espanhol de 2019
D
ecorreu a 26 de
maio (26M), com
as eleições euro-
peias, autonómicas
e municipais, uma
espécie de 2i volta
das eleições legislativas espanholas
de 28 de abril (28A). No fecho do
ciclo eleitoral, os partidos vence-
dores das legislativas (PSOE, socia-
listas de centro- esquerda; e Unidas
Podemos, UP, esquerda radical),
bem como aqueles que tiveram
uma melhor evolução de resultados
face às legislativas de 2016 (Vox, de
extrema direita; Ciudadanos, Cs,
centro direita liberal; ERC e PNV,
nacionalistas catalães e bascos),
tentavam consolidar esses resulta-
dos, enquanto os outros (sobretudo
o grande perdedor que foi o PP,
Partido Popular, de direita) tenta-
vam reverter a tendência verificada
nas legislativas do 28A.
O PSOE teve ótimos resultados
seja ao nível europeu, seja ao nível
das autonomias e municipalidades,
liderando claranlente a contenda e
conquistando a liderança em votos
e lugares em muitas c.omunidades
que eram tradicionais bastiões
da direita, ou seja do PP (ver El
Mundo, 27 - 5- 2019). Todavia, fosse
por causa do mau resultado geral
do UP, fosse pelo pom resultado
geral dos Cs, em muitos casos (ou
seja, em várias comunidades e
municípios) o poder determinan-
te de fazer alianças fica nas mãos
destes últimos e , portanto, apesar
das vitórias do PSOE, a situação
tanto poderá gerar alternância e
governos arco- íris (PSOE com Cs)
- ou seja, juntando a esquerda e a
di,reita - como a manutenção do
poder do PP e apenas alternância
parcial da hegemonia do PP para
governos de direitas (PP e Cs ou PP,
CSeVox).
Apesar da confirmação do
refluxo do PP no fecho do ciclo
eleitoral, em geral, a manutenção
do poder das direitas (mas agora
em aliança sine qua non necessária
das três direitas, do ponto de vista
da aritmética, tal como o expe-
rimento pioneiro na Andaluzia)
na Comunidade de Madrid e no
Município de Madrid, e o facto de
o Cs não ter ultrapassado o PP, na
esmagadora maioria das situações
e sobretudo ao nível nacional, evi-
tou a humilhação dos "populares"
e a substituição do seu lider, Pablo
Casado. Por outro lado, tornou
agridoce a vitória das esquerdas e
evidenciou os efeitos perversos das
cisões no UP. De assinalar, ainda,
como indicador de tal refluxo dos
conservadores e da rejeição da
estratégia ultra- centralista do PP, o
caso de Barcelona (a segunda cida-
de de Espanha): os independentis-
tas da ERC (Esquerda Republicana
da Catalunha) venceram o
Barcelona Comú (aliança liderada
por Ana Colau, com organizações
locais e o UP), embora tenham tido
ambos dez vereadores (conce-
jales) cada~; o PP ficou- se por
dois vereadores e o Cis (BPC-Cs),
encabeçado pelo antigo primeiro-
- ministro francês Manuel Valls (de
origem catalã), quedou- se pelos
cinco, num total de 42 vereadores.
Mesmo depois de 26M ainda não
estão completamente clarificados
os cenários para a formação do go-
. verno de Espanha, seja um governo
minoritário do PSOE apoiado numa
aliança parlamentar formal com o
UP e outras pequenas formações,
seja uma coligação formal dos dois
partidos PSOE e UP, com apoio de
outros. Dados os maus resultados
do UP nas colDunidades e nas mu-
nicipalida~es, voltou até a falar- se
na imprensa espanhola da possibi-
lidade (baStante mais improvável)
de uma aliança entre o PSOE e o Cs
(ao nível nacional).~
O ciclo eleitoral e a questão
catalã As legislativas de 28A foram
antecipadas ( convpcadas pelo
primeiro- ministro Pedro Sanchez,
( lider do PSOE) devido ao chumbo
do Orçamento Geral do Estado
para 2019 pelos partidos inde-
pendentistas da Catalunha (ERC
e PDeCat), que tinham apoiado
a moção de censura que depôs
Mariano Rajoy üunho de 2018) e
''
Uma reforma
federalizante, para
acomodarsemru~as
as tensões separatistas
na Catalunha 1
deveria ser fruto
de um processo de
negociação conduzido
com inteligência,
moderação, respaldo
democrático e
constitucional
depois investiu Sanchez üunho
de 2018) como chefe de Governo.
Além dos escândalos de corrup-
ção, que minaram fortemente a
legitimidade da governação do
PP e culminaram na decisão do
Tribunal Nacional (Audiencia
Nacional) no caso Gürtel, precipi-
tando a moção de censura, a forma
como foi conduzido o processo
catálão este.ve também na origem
da crise de governação do PP em
2018. Nomeadamente, a repressão
severa ao referendo de 1 de outubro
de 2017, seguida da aplicação do
artigo 155 da Constituição (suspen-
dendo os órgãos autonómicos na
Catalunha) e, depois, em dezem-
bro de 2017, as eleições regionais
Catalunha) a decidirem livremen-
te o seu futuro, num referendo à
autodeterminação.
Esta legitimidade democrática
do direito a decidir, que tem sido
ainda mais vasta do que a maioria
a favor da independência, por-
que inclui o UP e os seus aliados
na região, tem chocado com o
Estado de Direito, ou seja, com o
enquadramento constitucional que
exigiria pelo menos uma consulta
generalizada a todos os espanhóis
. para permitir uma secessão de
parte do território. Como já referi
em outros artigos no JL sobre o
tema da Catalunha, quando há um
conflito reiterado e prolongado
entre a democracia e o Estado de
Manifestação de apoio à Independência da Catalunhà, em Madrid
antecipadas na Catalunha, as quais
voltaram a dar um governo arco-
- íris (ou seja, juntando a esquerda
e a direita catalãs) de independen-
tistas catalães e reduziram o PP
na Catalunha à quase irrelevância
politica. Sublinhe- se, aliás, que
desde o..impasse hispano-cata-
lão de 2010, com o chumbo de
grande parte do novo Estatuto
da Catalunha pelo Tribunal
Constitucional, a pedido do PP,
as sucessivas eleições regionais
na Catalunha (2012, 2015, 2017)
têm dado maiorias (tangenciais, é
certo) de representantes a favor da
independência e, adicionalmen-
te, legitimado um programa que
defendia o direito dos catalães (isto
é, todos os cidadãos residentes na
Direito, como é o caso, então a
via de'saida deve ser a negociação
politica entre as partes em conflito,
não a crinlinalizaÇão de uma parte,
como tem tentado fazer Madrid,
nomeadamente com a prisão e
julgamento de lideres politicos e
sociais catalães, por organizarem o
referendo de 1 de outubro de 2017
sobre a autodeterminação.
Um conflito de legitimidades
Todavia, na questão catalã
há não apenas um conflito de
legitimidades entre democracia
e Estado de Direito, há também
um conflito de legitimidades
politicas democráticas. Por um
lado, os partidos independentistas
catalães têm recebido na região
reiterado apoio popular maioritário
às suas teses, sobre o direito da
Catalunha a decidir livremente
o seu futuro, acima de tudo,
mas também à criação de uma
República Catalã. Por outro lado,
as maiorias populares catalãs (nas
urnas) a favor do direito a decidir
são muito mais vastas do que as
maiorias a favor da independência.
Na verdade, estas últimas, as
dos independentistas, têm sido
sempre tangenciais, que muitos
consideram demasiado estreitas
para um processo de secessão
territorial. Uma via de saída, neste
domínio e caso as forças do centro
(PSOE, PP, Cs, UP) aceitassem um
referendo de autodeterminação
na Catalunha, que não aceitam,
poderia ser a exigência de uma
maioria alargada de dois terços,
por exemp1o. Adicionalmente,
há também um conflito de
legitimidades democráticas na
questão catalã, muito evidente
com o resultado das eleições do
28A e do 26M: se é certo que as
forças independentistas saíram
fortalecidas na Catalunha, também
é certo que o grande vencedor do
ciclo eleitoral em Espanha, o fSOE,
e o seu lider (ver Pedro Sanchez,
Manual de Resistencia, Madrid,
Península, 2019), rejeitaram
categoricamente qualquer
ideia de negociação politica
hispano- catalã fora do quadro
constitucional, apostando mais na
via federalizante e rejeitando com
clareza as vias defendidas pelas
forças independentistas.
Nestas condições, seria dese-
jável uma aproximação entre as
partes, quiçá rumo a um apro-
fundamento federal do sistema
politico espanhol. A negociação
politica, e não ajudicialização,
impõem- se, em qualquer cas.o,
sendo a via defendida por Pedro
Sanchez. Adicionalmente, é preciso
contar com a oposição das forças
conservadoras no sistema politi-
co, nas instituições judiciais e nas
forças armadas. Ou Seja, dados os
conflitos de legitimidades politi-
cas em Espanha e as posições das
forças instaladas sobre a questão
catalã, uma reforma federalizante
do sistema politico espanhol, no-
meadamente para acomodar sem
roturas as tensões separatistas na
Catalunha, deveria ser fruto de um
processo de negociação conduzido
com inteligência, moderação e ,
na maior extensão possível, com
reSpaldo democrático e constitu-
cional. ,JL