Le Monde Diplomatique Brasil #174 Riva (2022-01)

(EriveltonMoraes) #1

JANEIRO 2022 Le Monde Diplomatique Brasil 21


Diante do impasse, seria até natural
que juízes concedessem liminares bar-
rando a resolução. Ainda em 2010, a
Abia conseguiu a primeira liminar, que
representou o precoce fim da tentativa
da Anvisa de regular a publicidade de
alimentos não saudáveis no Brasil. Até
hoje, o caso segue sem uma decisão de-
finitiva do Judiciário.
A derrota cabal do tema, ao menos
na Anvisa, veio na sequência. Segundo
importante lobista do setor de alimen-
tos, durante a campanha presidencial
de 2010, um grupo de 156 empresários
procurou o comitê de campanha da
candidata Dilma Rousseff para recla-
mar da atuação da Anvisa, que seria re-
fratária ao empresariado. Este teria saí-
do de lá com a promessa de que a
presidenta poria “ordem na casa”. A no-
meação, em 2011, de novo diretor da
Anvisa seria o cumprimento desse
acordo. Também egresso da Casa Civil,
Jaime Cesar Oliveira era visto como “o
homem da Dilma” na Anvisa e teria a
função de estabelecer um novo canal
de diálogo com o setor privado. Em
2012, houve uma reestruturação inter-
na na Anvisa, por meio da qual se des-
mantelou a Gerência-Geral de Publici-
dade, responsável por liderar essa
pauta na agência. Foi o fim de qualquer
pauta ligada à publicidade na Anvisa.


UM DEBATE AMADURECIDO
Essa história revela como a conjuntura
é decisiva para o sucesso de uma políti-
ca pública. Hoje, o cenário é muito
mais favorável do que quinze anos
atrás para o avanço de políticas públi-
cas de promoção da alimentação sau-
dável e, principalmente, para a regula-
ção de alimentos não saudáveis.
John Kingdon propõe um modelo
que nos ajuda a compreender como de-
terminado assunto pode entrar na
agenda política. Segundo o autor, um
tema só passa a ser alvo de medidas go-
vernamentais quando há a convergên-
cia de três f luxos: 1) problemas; 2) solu-
ções; 3) política.
Primeiramente, uma questão preci-
sa ser reconhecida como um problema
social de fato. Também é necessário
que haja propostas de soluções factí-
veis e que representem valores com-
partilhados por vários grupos. Deve
haver ainda uma conjuntura favorável,
na qual forças políticas possam formar
coalizões capazes de negociar propos-
tas para resolver o problema.
No primeiro f luxo, houve uma ver-
dadeira ruptura. O problema das DCNT
e da obesidade apenas começava a se
estabelecer em 2000. A própria ideia de
que certos alimentos são um fator de
risco, causando danos à saúde, ainda
estava distante do senso comum.
Hoje as DCNT já são responsáveis
por mais de 70% das mortes. A obesida-
de atingiu níveis epidêmicos, com a
maior parte da população mundial vi-


vendo em países onde é mais frequente
a morte por sobrepeso e obesidade do
que por desnutrição – não à toa, a OMS
vem conclamando os países não a re-
duzir, mas a frear o crescimento dos ín-
dices de obesidade. No Brasil, 60% da
população adulta tem excesso de peso
e mais de 25% está obesa.
Está cada vez mais estabelecida a
conexão entre essas doenças e os ali-
mentos ultraprocessados, termo que
ganhou destaque em 2009, ano da au-
diência na Anvisa. Trata-se de uma no-
va classificação de alimentos proposta
pelo Núcleo de Pesquisas Epidemioló-
gicas em Nutrição e Saúde da USP. Im-
portante contribuição para o debate
científico mundial, a classificação NO-
VA supera a categorização por nutrien-
tes, como proteína e carboidratos, e fo-
ca a análise no grau de processamento
dos alimentos.
Em 2014, o Ministério da Saúde pu-
blicou o Guia Alimentar para a Popula-
ção Brasileira, que adota a NOVA e su-
gere evitar o consumo de alimentos
ultraprocessados, caracterizados como
formulações industriais de substâncias
derivadas de alimentos, mais corantes,
aromatizantes, emulsificantes e outros
aditivos cosméticos.
Com a nova classificação, a indús-
tria de ultraprocessados foi diretamen-
te associada à epidemia de obesidade
vigente. Artigo de 2011 da The Lancet já
havia elevado o problema a outro pata-
mar ao afirmar que o aumento simultâ-
neo da obesidade em quase todos os
países parecia ser guiado por mudan-
ças nos sistemas alimentares, que esta-
vam produzindo alimentos mais pro-
cessados e baratos sob a égide de uma
publicidade eficaz.
Essa discussão na saúde ganha ain-
da mais amplitude quando conectada
à temática ambiental, cerne das preo-
cupações da atual geração. Relatório
da Comissão de Obesidade da The

Lancet publicado em 2019 traz o con-
ceito de sindemia global para caracte-
rizar a ocorrência simultânea das pan-
demias de obesidade, desnutrição e
mudanças climáticas, decorrentes,
entre outros fatores, do sistema agroa-
limentar global.
Nesse contexto, governos e socieda-
des foram pressionados a apresentar
soluções, o segundo f luxo de Kingdon.
Se em 2004 a OMS ainda era tímida em
suas recomendações, documentos pos-
teriores foram mais explícitos em de-
fender a adoção de medidas regulató-
rias para coibir a publicidade.
Na esteira dessas recomendações,
diversos países passaram a restringir a
publicidade de alimentos ultraproces-
sados. Nas Américas, Argentina, Bolí-
via, Chile e Peru possuem regulações
desse tipo. Em 2021, Reino Unido e Es-
panha anunciaram que vão colocar em
prática medidas semelhantes.
O f luxo da política permanece co-
mo o maior entrave, assim como era
em 2000. À época, não havia clima po-
lítico nem apoio social para o avanço
do tema, como ocorreu, por exemplo,
com o tabaco, que logo passaria a ser
fortemente regulado, com a proibição
de fumar em lugares fechados e o au-
mento da tributação.
A alternativa para o avanço do te-
ma hoje é que o Ministério da Saúde li-
dere a discussão no âmbito do Con-
gresso Nacional, o que certamente não
ocorrerá no atual governo. No Legisla-
tivo, a disputa se daria em contexto ad-
verso, pois é lá que o lobby do empre-
sariado se mostra mais forte e sua
inf luência nas políticas de saúde apa-
rece de forma mais contundente. As-
sim, tampouco há, hoje, condições po-
líticas para que a regulação da
publicidade avance.
Apesar das dificuldades, é impor-
tante olhar de uma perspectiva histó-
rica mais ampla. O problema das DC-

NT é gravíssimo e se torna cada vez
mais evidente, ainda mais durante a
atual pandemia do coronavírus. Em
realidade, trata-se do encontro de
duas pandemias. Dados do Ministério
da Saúde de 2020 revelam que sete em
cada dez óbitos decorrentes de Co-
vid-19 eram de pessoas com alguma
doença crônica ou fator de risco pré-
vios, como a obesidade.
A despeito da persistente assime-
tria de poder entre a sociedade civil or-
ganizada e o setor regulado, houve
enorme fortalecimento dos grupos de
interesse público, com a expansão e
articulação de potentes redes em prol
da saúde pública.
Para garantirmos um mundo mais
saudável e sustentável, a questão da ali-
mentação, dos sistemas alimentares,
da maneira e do tipo de alimento que
comemos e produzimos é primordial.
Num contexto em que a insegurança
alimentar volta a atingir níveis alar-
mantes no país, as duas faces do direito
à alimentação adequada e saudável, a
desnutrição e a obesidade, devem ser
enfrentadas com urgência.
Assim como o tabaco esteve no
centro do debate, a regulação dos ali-
mentos ultraprocessados deverá do-
minar as discussões de saúde pública
no Brasil e no mundo nos próximos
anos e décadas. Não há mais como
desviar o foco. Trata-se de uma pauta
cuja hora chegou.
Pode ser que a regulação da publici-
dade não seja a política que avance
mais rapidamente. A OMS, no entanto,
recomenda outras abordagens regula-
tórias para o desestímulo ao consumo
de alimentos não saudáveis, como a tri-
butação, as advertências nos rótulos e a
restrição da comercialização em am-
biente escolar. No Brasil, a própria An-
visa aprovou em 2020 a rotulagem fron-
tal com alertas em produtos com alto
teor de açúcar, gordura e sódio, dando
novo início a essa corrida regulatória. A
experiência da trajetória de regulação
do tabaco descortina os caminhos a se-
rem trilhados, bem como as armas e os
discursos do embate político na área de
alimentação. A questão é saber quão
rápido a sociedade civil organizada e
seus aliados políticos conseguirão ace-
lerar esse processo.

*Marcello Fragano Baird, doutor em
Ciência Política pela USP, é professor da
ESPM e do MBA em Relações Governa-
mentais da FGV, coordenador de advocacy
na ACT Promoção da Saúde, ONG que
atua na defesa e promoção das políticas de
saúde pública, e autor do livro Saúde em
jogo: atores e disputas de poder na ANS
(Fiocruz, 2020).

*Este artigo deriva e possui excertos do livro Ali-
mentação em jogo: o lobby na regulação da publi-
cidade no Brasil, de Marcello Fragano Baird, que
acaba de ser publicado pela Editora UFABC.

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