Le Monde Diplomatique Brasil #174 Riva (2022-01)

(EriveltonMoraes) #1

26 Le Monde Diplomatique Brasil^ JANEIRO 2022


“EM ALGUM LUGAR” ENTRE A UCRÂNIA E A MOLDÁVIA, À SOMBRA DA RÚSSIA


O presidente da República da Transnístria foi reeleito, sem surpresas, nas eleições
de 12 de dezembro. Nessa região separatista e pró-russa da Moldávia, a política
não mobiliza mais as multidões – a começar pela juventude, cansada de viver em
um Estado não reconhecido. Já as autoridades defendem a independência e
uma visão multicultural da nação moldava, em linha com a herança soviética

POR LOÏC RAMIREZ*, ENVIADO ESPECIAL

Transnístria, vestígio


de um conflito congelado



Q


uando um estrangeiro me
pergunta, respondo que sou
de algum lugar entre a Ucrâ-
nia e a Moldávia”, replica com
malícia Ludmila Kliuch. Segurando
uma xícara de café, essa jovem morena
de 36 anos sabe que pronunciar o nome
do país onde vive deixaria perplexo
qualquer um de seus interlocutores es-
trangeiros. Professora de francês, ela
mora em Tiraspol, capital da Transnís-
tria, esse “algum lugar” tão desconheci-
do. Chamada oficialmente República
Moldava do Dniester (ou Pridnestro-
vie), esse protoestado situado na parte
oriental da Moldávia, entre o Rio Dnies-
ter e a fronteira ucraniana, não é reco-
nhecido por nenhum membro das Na-
ções Unidas. Sinal da complexidade da
situação: Kliuch possui três passapor-
tes, um russo, um moldavo e um da
Transnístria. Desde 2006, Moscou dis-
tribui aos cidadãos de Pridnestrovie do-
cumentos de identidade, causando in-
satisfação na Moldávia, que reivindica
sua soberania sobre a entidade seces-
sionista. Indispensável para viajar, o
passaporte de um terceiro país consti-
tui um “abre-te, sésamo” que todo
transnistriano possui. “Mas isso não
quer dizer que acato a política de um
país ou de outro”, apressa-se a esclare-
cer a professora. “É apenas uma questão
prática.” Em seu caso, trata-se de poder
continuar estudando na Moldávia.
A Transnístria voltou ao centro do
noticiário após vitória nas eleições de
16 de novembro de 2020 da muitíssimo
eurófila Maia Sandu para a presidência
da Moldávia (com 57% dos votos), um
resultado fortalecido oito meses depois
pelas eleições legislativas ganhas por
seu partido Ação e Solidariedade, com
48% dos votos. Essa ex-economista,
com passagem pelo Banco Mundial,
destacou-se, desde que assumiu o car-
go, pelo recrudescimento da hostilida-
de contra o vizinho secessionista. Lem-
brando que “a região da Transnístria é
parte integrante da Moldávia”, a nova
dirigente exigiu a retirada das tropas
russas, estacionadas na zona de segu-

rança que delimita a fronteira com a
entidade secessionista, em virtude do
acordo de 21 de julho de 1992 entre a
Federação Russa e seu país. Ela pôde
contar com o apoio dos Estados Uni-
dos, país que pela voz de seu embaixa-
dor se declarou, em maio de 2021, favo-
rável a uma “completa reintegração da
Transnístria à Moldávia”. Sucedendo
um governo considerado pró-russo,
Sandu tem uma agenda resolutamente
voltada para a integração europeia. A
vizinha Ucrânia, que partilha a mesma
ambição e se vê às voltas com o seces-
sionismo pró-russo da região do Don-
bass, mostra na prática sua solidarie-
dade a Chişinău (a capital moldava):
desde 1º de setembro, Kiev proíbe que
veículos com placa transnistriana en-
trem em seu território.

“A União Europeia parece querer res-
suscitar a República Socialista Soviética
da Moldávia”, ironizou Vitali Ignatev,
ministro das Relações Exteriores de
Pridnestrovie, quando o interrogamos
sobre as mudanças políticas ocorridas
do outro lado da fronteira. O homem se
referia ao golpe de Estado de 1940, que
criou a entidade moldava no seio da
União Soviética. Sob o domínio do Im-
pério Russo desde o século XVIII, a re-
gião da Transnístria integrou antes a Re-
pública Socialista Soviética da Ucrânia
no fim da guerra civil (1917-1923). Ela go-
zou, ali, de um estatuto de autonomia
que garantiu, sobretudo, direitos lin-
guísticos à importante minoria então
qualificada de romena. Mas Moscou iria
adotar outra linha política no fim dos
anos 1930. As autoridades soviéticas in-

sistiram na existência de uma identida-
de moldava específica. O alfabeto ciríli-
co substituiu as letras latinas do alfabeto
romeno, para deixar claro que a inf luên-
cia eslava impregnara as minorias rome-
nófonas da orla do império czarista a
ponto de formar uma cultura própria.
Esta se estenderia até a Bessarábia, re-
gião situada além do Dniester que esca-
pou ao poder bolchevique em 1918, antes
de ser absorvida pela Romênia. Em 1940,
o Exército Vermelho retomou sua posse
em virtude de cláusulas secretas do Pac-
to Germano-Soviético. Fundida com a
Transnístria, que então se separou da
Ucrânia, a Bessarábia se tornou a Repú-
blica Socialista Soviética da Moldávia.

JOVENS PARTEM
PARA O ESTRANGEIRO
Unidas por decisão de Moscou, as duas
margens do Dniester viram de novo seu
destino se dividir após o fim da União
Soviética. Em 2 de setembro de 1990,
alguns meses depois que o governo
moldavo declarou sua soberania, a
Transnístria também reivindicou inde-
pendência. O novo projeto nacional de
Chişinău, concebido em essência por
partidários da união com a Romênia,
foi maciçamente rejeitado pelas popu-
lações russófonas do leste do país. Em
março de 1992, uma tentativa militar
de retomada da margem esquerda do
rio desandou em conf litos que encerra-
ram um acordo de cessar-fogo, assina-
do em 21 de julho. Três décadas depois,
o protoestado da Transnístria subsiste
como vestígio dessa crise geopolítica.
“Nossa independência já é uma reali-
dade”, afirmou com orgulho Ignatev.
“Só falta regulamentá-la.”
Nada, porém, garante o caráter irre-
versível desse fato consumado, pois,
paralelamente à busca de reconheci-
mento internacional, as autoridades
transnistrianas poderiam muito bem se
defrontar com o problema da legitima-
ção interna de seu Estado. Uma geração
inteira cresceu ali sem ser agente ou
testemunha do conf lito com o vizinho
e, passado algum tempo, o entusiasmo
pela vitória arrefeceu consideravel-
mente. “Quer saber como é morar num
país não reconhecido?”, pergunta Anna
N. com um desânimo mal contido. Ci-
garro apenas começado entre os dedos,
a jovem está sentada no terraço de um
restaurante da Avenida 25 de Outubro,
que atravessa Tiraspol, a capital, de les-
te a oeste. Nessa artéria, aproveitando a
doce noite de primavera, grupos de
adolescentes passeiam e se encontram,
entre amigos ou em casais. Com 20
anos, essa funcionária do Ministério da
Agricultura parece ter pouco interesse
pelo futuro do Estado que a emprega.
“Talvez o país venha a ser reconhecido,
talvez se torne uma província autôno-
ma da Moldávia”, diz sarcasticamente.
“Seja como for, quando isso acontecer,
Presidente da Moldávia, Maia Sandu em reunião com da União Europeria espero estar bem longe daqui.”

© Kenzo Tribouillard/Pool via REUTERS
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