Le Monde Diplomatique Brasil #174 Riva (2022-01)

(EriveltonMoraes) #1

36 Le Monde Diplomatique Brasil^ JANEIRO 2022


Esses gentis artistas


governamentais!


Sonhar com mundos novos? Diversos “criadores” responderam ao chamado do governo,
engajado em financiar generosamente projetos com essa finalidade. O governo acertou
em cheio: esses projetos não correm o risco de causar problemas nem de flertar com
a crítica. Os artistas laureados estão a serviço do embelezamento do sistema

POR EVELYNE PIEILLER*

F


oi um momento comovente. A
pandemia e sua gestão provoca-
vam uma pergunta insistente so-
bre as “disfunções” de nossa so-
ciedade e suscitavam, com o inabalável
desejo de acabar com seus erros, a não
menos inabalável certeza de que nada
mais seria como “antes”: de todos os la-
dos, conclamava-se o “mundo de de-
pois”. O entusiasmo arrefeceu um pou-
co, mas ainda assim o governo abriu, em
junho de 2021, no quadro do plano de
recuperação, um concurso destinado
aos artistas cujo nome é uma variante
desse tema: “Mundos novos”. Esse con-
trato público de 30 milhões de euros tem
um duplo objetivo: sustentar os criado-
res, em sentido amplo, e, graças às suas
obras concretizadas no local de sua es-
colha, “reencantar o mundo”, como se lê
no site do Ministério da Cultura. Eis aí
uma fórmula desgastada que, sem dúvi-
da, deve seu sucesso persistente a um
sentimento dos mais falaciosos: com
efeito, quando é que o mundo foi encan-
tado? E, se foi, quais seriam as caracte-
rísticas desse encantamento perdido?
O editorial do comitê artístico encar-
regado do caso, e que recentemente es-
colheu 264 projetos entre os 3.200 apre-
sentados, procura esclarecer a frase:
trata-se de “sonhar mundos novos” e,
“principalmente, não um Novo Mun-
do!”. Não um Novo Mundo. “Mundos pa-
ra pensar, criar, construir e acolher, mas
não conquistar.”^1 A coisa continua vaga.
Construímos, acolhemos, mas no inte-
rior do que existe? Vamos reencantar o
que há? Bernard Blistène, ex-diretor do
Museu Nacional de Arte Moderna do
Centro Pompidou, a quem o Eliseu con-
fiou a missão de fazer esse contrato pú-
blico, explica que a escolha dos laurea-
dos foi ditada sobretudo pela “expressão
da consciência do mundo no qual eles
v i v e m”.^2 Mas o que essa consciência do
mundo exprime, afinal? Que mundos
novos a acolher (e, sobretudo, a não con-
quistar) propõem os laureados a 29% dos
artistas plásticos e desenhistas?
Como bem se esperaria de artistas
decididos a aceitar os termos do con-
curso, seus mundos novos estão delica-

damente em consonância com os gran-
des temas político-midiáticos dos dias
de hoje: o aquecimento climático, o pe-
so do patriarcado, a abertura ao próxi-
mo, a miscigenação e também a reloca-
lização, a redescoberta dos recursos
esquecidos e disponíveis... Um estudo
dos trajes e da anatomia das estátuas
de rainhas jacentes na Basílica de Sain-
t-Denis permitirá, assim, “dar a palavra
ao corpo dessas mulheres que viveram
sob a dominação patriarcal”; o límulo,
também conhecido como caranguejo-
-ferradura-do-atlântico, “cuja morfolo-
gia permanece quase inalterada depois
de 50 milhões de anos”, será objeto de
um vídeo; um trabalho sobre os espa-
ços verdes públicos, “pelo desenvolvi-
mento da ergonomia social, a utiliza-
ção dos sons e vibrações, o paisagismo
e os centros de repouso itinerantes” te-
rá por objetivo “combater as arquitetu-
ras hostis” características desses espa-
ços, “principais pontos de violência
racial e de gênero”. O reino vegetal tem
enorme sucesso (“adquirir uma f lores-
ta para transformá-la em obra coletiva
com vistas a um mundo alternativo”,
“criar um espaço de quietude em uma
cabana construída por cima” das árvo-
res da Vila Médicis, em Roma, e da Vil-
lers-Cotterêts, no norte da França). Re-
torno ao cultivo de algas, ao vidro
soprado, um lustre “inspirado em espé-
cies vegetais” para um castelo, colheita

de algodão de choupo, “alternativa aos
materiais industrializados”...

VAZIO POLÍTICO
A preocupação ecológica parece ter si-
do muito ativa no comitê artístico, pois
o filósofo Emanuele Coccia, consultor
científico da exposição “Nós, as árvo-
res” na Fundação Cartier (2019), viu se-
lecionadas as duas propostas de que
participou. Em contrapartida, a preo-
cupação social, com exceção do cuida-
do com os “marginalizados”, está curio-
samente ausente: sim, há alguns toques
aqui e ali, como o projeto de reintrodu-
ção do “macacão” hoje produzido no
Paquistão, e outro, desopilante, de “uti-
lização de cortinas de macramê” para
“transformar a visão dos habitantes”,
em colaboração com artesãos locais,
mas o tema permanece em geral igno-
rado. Ao contrário, o que nos deixa ad-
mirados é o baixo contínuo do “sagra-
do”, por exemplo: “um drama vitoriano
em língua céltica, interpretado por um
grupo de eletrodomésticos” acontecerá
em Carnac, local querido de vários cria-
dores; mas são incontáveis os “rituais
dos antigos” revividos, os transes e me-
ditações, as referências a santos e deu-
ses, e a escolha de abadias para acolher
as obras. Obras das quais, com frequên-
cia, ignoramos completamente a forma
que assumirão, mas que parecem pro-
pícias a atiçar conversas e debates. O

que conta é a intenção, e a intenção é
boa. Ou melhor, benevolente. Os cria-
dores apresentam a característica úni-
ca de poder nos levar a tomar consciên-
cia. Jamais se exaltará suficientemente
a força instigadora de um pedaço de
“tricô” instalado no litoral para “ques-
tionar as práticas ambientais”. É assim
que o mundo será reencantado.
Rimos. Pois, sem mesmo falar em
“tomar consciência” das causas que
eles defendem, sem mesmo insistir no
vazio político das declarações de inten-
ção, podemos observar que esses artis-
tas governamentais parecem não ter
“tomado consciência” de que, nas áreas
que lhes são próximas, a situação é
preocupante. Convém citar, sem ir mui-
to longe: a reforma do seguro-desem-
prego, catastrófica para todos, incluin-
do os trabalhadores eventuais; a
convicção, para 52% dos franceses, de
que sairão de casa mais raramente, da-
qui por diante;^3 a perda considerável de
público nos cinemas (de 20% a 30%) e,
pior ainda, nos teatros e salas de con-
certo; o hábito contraído por 42% da
população, sempre segundo o estudo
da Harris Interactive, de recorrer aos
aparelhos digitais para ter acesso às
obras; a possibilidade iminente, para
plataformas como a Netf lix, de difun-
dir muito mais rápido filmes após sua
saída dos cinemas, o que acarretará
uma forte diminuição no número de
salas; o papel cada vez mais destacado
dos mecenas no apoio às grandes insti-
tuições públicas, como a Fundação
BNP-Paribas para (entre outros) o Tea-
tro Nacional da Ópera ou o Teatro de
Chaillot-Centre Nacional de Dança; a
queda das receitas, que levará a uma re-
dução das subvenções e, portanto, das
criações e empregos. No pano de fundo,
o estímulo à formatação dos gostos...
Emmanuel Macron, ao anunciar os
resultados, fez um discurso brilhante-
mente conclusivo: “O que torna o mun-
do atual insuportável é [...] o sonho de
um mundo antigo que nunca existiu,
mas parece mais aconchegante e mais
tranquilizador que aquele no qual vive-
mos” (Le Figaro, 9 nov. 2021). Nada mais
simples. Não são as “reformas”, a injus-
tiça, a financeirização que tornam o
mundo insuportável. É o passado miti-
ficado. O das conquistas sociais? Os ar-
tistas governamentais e suas obras
aprovam. Esse regime tem os artistas
que merece – e vice-versa.

*Evelyne Pieiller é jornalista do Le Mon-
de Diplomatique.

1 Site do Ministério da Cultura da França.
2 “‘Mondes nouveaux’: Macron ironise sur le
‘monde d’après’ en recevant des artistes”
[“Mundos novos”: Macron ironiza o “mundo
de depois” ao receber os artistas], 20 Minu-
tes, Paris, 9 nov. 2021.
3 Étude Harris Interactive pour le ministère de la
Culture” [Estudo Harris Interactive para o Mi-
nistério da Cultura], 31 ago.-2 set. 2021.

TRINTA MILHÕES DE EUROS EM CONTRATO PÚBLICO POLITICAMENTE CORRETO


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