Um lugar bem longe daqui

(Carla ScalaEjcveS) #1

Por fim, preparou uma papa com água quente e mingau e seguiu até a praia
para dar comida às gaivotas. Quando pisou lá, todas elas começaram a girar e
mergulhar emboladas, e ela se ajoelhou e jogou a comida na areia. Enquanto as
aves se aglomeravam ao seu redor, sentiu as penas roçarem nos braços e coxas e
inclinou a cabeça para trás, sorrindo com as aves. Mesmo que ao mesmo tempo as
lágrimas escorressem por seu rosto.


*


Durante um mês depois do dia 4 de julho, Kya não saiu de casa, não foi ao brejo
nem ao posto de Pulinho buscar gasolina ou mantimentos. Viveu de peixe seco,
mariscos, ostras. Mingau e verduras.
Quando todas as prateleiras ficaram vazias, pegou o barco e foi até o posto de
Pulinho comprar mantimentos, mas não conversou com ele como de costume.
Fez o que precisava e o largou lá em pé, encarando-a. Precisar das pessoas acabava
em sofrimento.
Algumas manhãs depois disso, o gavião-de-cooper voltou aos degraus da sua
porta e espiou através da tela. Que estranho, pensou, inclinando a cabeça para o
animal.
— Ei, Coop.
Com um saltinho, o gavião saiu do chão, deu um rasante, então se ergueu bem
alto em direção às nuvens. Enquanto olhava para ele, Kya finalmente falou para si
mesma:
— Preciso voltar para o brejo.
Então pegou o barco e saiu, percorrendo os canais e as valas, procurando
ninhos de pássaros, penas ou conchas pela primeira vez desde que Tate a havia
abandonado. Mesmo assim, não deixava de pensar nele. O fascínio intelectual de
Chapel Hill ou as garotas bonitas o tinha fisgado. Não conseguia imaginar as
universitárias, mas fosse qual fosse o formato delas devia ser melhor do que o de
uma catadora de mariscos de cabelo emaranhado e descalça que morava num
barracão.
Quando agosto chegou ao fim, sua vida voltara aos eixos: andar de barco,
colecionar objetos, desenhar. Meses se passaram. Ela só ia ao posto de Pulinho
quando o estoque baixo de mantimentos exigia, mas falava muito pouco com ele.
Suas coleções amadureceram, catalogadas metodicamente por ordem, gênero e
espécie; por idade, de acordo com o desgaste dos ossos; por tamanho em
milímetros de penas; ou pelos matizes de verde mais frágeis. A ciência e a arte se
entrelaçavam na força uma da outra: as cores, luzes, espécies, a vida; tecendo uma
obra-prima de conhecimento e beleza que preenchia cada canto do seu barracão.
Seu mundo. E Kya foi crescendo junto — o caule da trepadeira —, sozinha, mas
mantendo todas aquelas maravilhas unidas.
Contudo, à medida que sua coleção crescia, o mesmo acontecia com sua
solidão. Uma dor do tamanho do seu coração morava no seu peito. Nada a
aliviava. Nem as gaivotas, nem um pôr do sol espetacular, nem a mais rara das

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