anos a vira uma vez ou outra, deslizando suavemente pelos cursos d’água como se
fizesse parte da correnteza, ou então saindo depressa da mercearia, feito um
guaxinim fugindo de uma lixeira.
Na primeira vez que fora visitar Kya na cadeia, dois meses antes, ele havia sido
conduzido até uma sala escura onde ela estava sentada diante de uma mesa. Ela
mantivera a cabeça baixa. Tom tinha se apresentado e dito que iria representá-la,
mas ela não falou nada nem levantou os olhos. Ele teve um impulso fortíssimo de
estender a mão para afagar a dela, mas algo — talvez a postura ereta ou o modo
como ela encarava o nada com a expressão vazia — a protegia de ser tocada.
Mexendo a cabeça em ângulos diferentes — numa tentativa de encontrar seu
olhar —, ele explicou como funcionava o julgamento, o que ela deveria esperar, e
então lhe fez algumas perguntas. Mas ela não respondeu, nem se mexeu, nem
olhou para ele nenhuma vez. Ao ser conduzida para fora da sala, virou a cabeça e
espiou por uma janelinha pela qual dava para ver o céu. Aves marinhas grasnavam
acima do porto da cidade e Kya parecia estar observando o canto delas.
Na visita seguinte, Tom enfiou a mão em um saco de papel pardo e deslizou
na direção dela um livro brilhante de papel couché. Intitulado As conchas mais raras
do mundo, o exemplar reunia desenhos a óleo em tamanho real das conchas dos
litorais mais distantes da Terra. Com a boca entreaberta, ela virou as páginas
devagar, meneando a cabeça para determinados espécimes. Ele lhe deu tempo.
Então voltou a falar, e dessa vez ela o encarou. Com uma paciência tranquila, ele
lhe explicou como funcionava o julgamento e chegou a desenhar a sala do
tribunal, mostrando a tribuna dos jurados, a do juiz e onde os advogados e ela
mesma ficariam sentados. Então desenhou bonequinhos de palito representando o
oficial de justiça, o juiz e a escrevente e explicou as atribuições de cada um.
Como no primeiro encontro, tentou explicar as provas que havia contra ela e
lhe perguntar seu paradeiro na noite da morte de Chase, mas qualquer menção a
detalhes a fazia se esconder dentro da concha outra vez. Mais tarde, quando ele se
levantou para ir embora, ela deslizou de volta o livro pela mesa, mas ele disse:
— Não, eu trouxe para você. É seu.
Ela mordeu o lábio e piscou.
*
E agora, pela primeira vez na sala do tribunal, ele tentou distraí-la da agitação atrás
dos dois indicando no desenho as diversas partes da corte. Mas foi inútil. Às 9h45,
a galeria já transbordava de moradores que ocupavam os bancos e zumbia com os
comentários estridentes sobre indícios e penas de morte. Um balcão pequeno nos
fundos da sala comportava mais vinte pessoas, e, embora não houvesse nenhuma
sinalização, todo mundo entendia que os negros só podiam se sentar ali. Naquele
dia, o balcão estava quase todo ocupado por brancos, com apenas alguns negros,
já que era um caso de brancos do início ao fim. Sentados perto da primeira fila
estavam agrupados alguns jornalistas do Atlanta Constitution e do Raleigh Herald.
Quem não encontrara lugar se aglomerava junto à parede dos fundos e às laterais