Um lugar bem longe daqui

(Carla ScalaEjcveS) #1

Na manhã seguinte, Kya quis correr até o toco para ver se alguma outra pena
tinha sido deixada, mas obrigou-se a esperar. Não podia esbarrar com o garoto.
Por fim, já perto do meio-dia, andou até a clareira e se aproximou devagar,
escutando com atenção. Como não ouviu nem viu ninguém, deu um passo à
frente, e um raro e efêmero sorriso iluminou seu rosto quando ela viu uma pena
fina e branca cravada no alto do toco. Ia da ponta dos seus dedos até o cotovelo,
fazendo uma curva graciosa que terminava numa ponta fina. Ela a ergueu e deu
uma gargalhada. A pena magnífica da cauda de um rabo-de-palha-de-bico-laranja.
Kya nunca tinha visto aquela ave marinha, pois não havia nenhuma na região,
mas em raras ocasiões era trazida até a costa pelos ventos dos furacões.
O coração de Kya se encheu de admiração por alguém ter tamanha coleção de
penas raras a ponto de poder se desfazer daquela ali.
Como ela não conseguia ler o velho guia de Ma, não sabia o nome da maioria
das aves e insetos, portanto inventava os próprios. E, mesmo sem saber escrever,
havia encontrado um modo de catalogar seus espécimes. Seu talento havia se
aprimorado, e agora ela era capaz de desenhar, pintar e esboçar qualquer coisa.
Usando giz ou aquarelas compradas na Five and Dime, desenhava pássaros, insetos
ou conchas nas sacolas do mercado e pregava os desenhos nos espécimes.
Naquela noite, deu-se ao luxo de acender duas velas e as colocou em pires em
cima da mesa da cozinha para ver todos os tons do branco e poder pintar a pena
de um rabo-de-palha-de-bico-laranja.


*


Mais de uma semana se passou sem nenhuma pena no toco. Kya foi lá várias vezes
ao dia e espiou com cautela por entre as samambaias, mas não viu nada. Ao meio-
dia, estava sentada no barracão, o que raramente fazia.
— Devia ter colocado o feijão de molho para a janta. Agora já não dá mais.
Percorreu a cozinha revirando os armários, tamborilando os dedos na mesa.
Pensou em pintar, mas não o fez. Foi outra vez até o toco.
Mesmo a distância, viu a pena comprida e listrada da cauda de um peru
selvagem. Ficou comovida. Os perus já tinham sido um dos seus preferidos. Ela já
vira uns doze filhotes escondidos debaixo das asas da mãe enquanto a ave
caminhava, alguns escapulindo por trás e correndo para alcançá-la.
Cerca de um ano antes, porém, quando estava atravessando um bosque de
pinheiros, Kya havia escutado um grito agudo. Um bando de quinze perus
selvagens — a maioria fêmeas, poucos machos — se alvoroçava ali perto, bicando
o que parecia ser um trapo engordurado no chão sujo. Suas patas levantavam uma
poeira que enevoava a mata, subia flutuando por entre os galhos e ficava presa ali.
Ao chegar mais perto, Kya vira que era uma fêmea no chão, e que as outras aves
do seu bando a bicavam e arranhavam seu pescoço e sua cabeça com as garras. Ela
emaranhara as asas nos arbustos de tal forma que as penas apontavam em direções
estranhas e ela não voava mais. Jodie tinha dito que, se uma ave fica diferente das
outras — desfigurada ou ferida —, tem mais chance de atrair um predador, então

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