Como muitas pessoas em todo o mundo, durante a pandemia eu me vi tolhido da
normalidade e enclausurado. Tentando criar alguma rotina saudável, no ir e vir do
quarto para a sala, da sala para o banheiro, do banheiro para o quarto, comecei a fazer
paradas cada vez mais frequentes na cozinha. Não apenas para comer, mas também
para cozinhar. Parece que tanto os que já praticavam a culinária quanto os que
decidiram ter um hobby novo para enfrentar a ansiedade fizeram da cozinha o
principal cômodo da casa. A atração culinária nestes anos de Covid se manifestou de
forma tão forte e ampla que um tuíte em espanhol proclamou: Se llama pandemia por la
cantidad de gente haciendo pan.
Não foi uma opção aleatória, tampouco inédita. A crítica de culinária norte-americana
M. F. K. Fisher escreveu que “nossas três necessidades vitais – comida, segurança e
amor – estão de tal modo entrelaçadas que não se pode falar de uma sem falar da outra
[...]. Há mais que uma comunhão de corpos quando dividimos o pão e bebemos o
vinho”. O alimento tem a função básica de combustível, mas a comida, produto
cultural, engloba algo mais: fala ao espírito e à memória, dá conforto e (re)forma a
sociedade, tanto mais em épocas de crise.
Foi durante uma dessas visitas à cozinha que, um dia, olhando para os livros de
culinária na estante, reencontrei o caderno de receitas da minha bisavó paterna. Como
gosto de cozinhar e sou historiador, minha avó, Maria Elisa Torelly Cruz, havia me
escolhido como fiel depositário do manuscrito. Aceitei o presente com carinho, mas
para mim tratava-se mais de um documento da história familiar do que de um livro
cujas receitas eu realmente utilizaria. Embora guarde muitas boas lembranças das
comidas da infância, nenhuma delas está relacionada a esta bisavó, com quem tive
pouco contato.
Ela se chamava Mary Amaro Torelly. Nasceu em Porto Alegre, em 1913, filha de
Ernestina Amaro da Silveira e do advogado Firmino da Silva Torelly. Era prima do
jornalista e humorista Aparício Fernando de Brinkerhoff Torelly (1895-1971), que ficou
conhecido com o pseudônimo Barão de Itararé. Graças ao capital econômico e social da
família, minha bisavó teve a educação que se esperava de uma jovem da elite gaúcha.
Cursou o tradicional Colégio Nossa Senhora do Bom Conselho, administrado por irmãs
franciscanas, e tal como sua mãe desde cedo frequentou os salões de chá e participou
de obras de caridade.