ENTREVISTADOR — Portanto, a sua prioridade, senhor Neander,
ninguém pode contestá-la, mas se trataria de uma prioridade relativa: digamos
que o senhor é o primeiro...
NEANDER — Antes de você, é claro...
ENTREVISTADOR — Estamos de acordo, mas não é esse o ponto. Quero
dizer que o senhor foi o primeiro a ser considerado o primeiro pelos que vieram
depois.
NEANDER — Você é que acha. Primeiro tem o papai...
ENTREVISTADOR — Não só, mas...
NEANDER — A vovó...
ENTREVISTADOR — E antes ainda? Preste bem atenção, senhor
Neander: a avó da sua avó!...
NEANDER — Não.
ENTREVISTADOR — Como, não?
NEANDER — O urso!
ENTREVISTADOR — O urso! Um antepassado totêmico! Como vocês
ouviram, o senhor Neander põe o urso como o criador de sua genealogia,
certamente o animal-totem que simboliza o seu clã, a sua família!
NEANDER — A sua! Primeiro há o urso, depois o urso vai, e come a avó...
Depois tem eu, depois eu vou e o urso, eu mato... Depois o urso, eu como.
ENTREVISTADOR — Permita que eu comente um instante para os
nossos ouvintes as preciosas informações que está nos dando, senhor Neander.
Primeiro há o urso!, o senhor disse muito bem, afirmando com grande clareza a
prioridade da natureza bruta, do mundo biológico, que serve de cenário, não é,
senhor Neander?, que serve de luxuriante cenário para o advento do homem, e é
quando o homem se mostra por assim dizer na ribalta da história que se inicia a
grande aventura da luta contra a natureza, primeiro inimiga e depois,
devagarinho, submetida aos nossos desejos, um processo multimilenar que o
senhor Neander evocou tão sugestivamente na dramática cena da caça ao urso,
quase um mito da fundação de nossa história.
NEANDER — Era eu que estava lá. Você, não. Havia o urso. Aonde eu vou
tem o urso que vem de lá. O urso, ele está sempre em torno de onde eu estou,
senão, não.
ENTREVISTADOR — É isso. Parece-me que o horizonte mental do nosso
senhor Neander compreende apenas a porção do mundo que entra em sua
percepção imediata, excluindo a representação de acontecimentos distantes no
espaço e no tempo. O urso é onde eu vejo o urso, ele diz, se eu não o vejo ele
não está lá. Isso é sem dúvida um limite que precisamos considerar na
continuação de nossa entrevista, evitando fazer-lhe perguntas que ultrapassem,
não é mesmo?, as capacidades intelectuais de um estágio evolutivo ainda
carla scalaejcves
(Carla ScalaEjcveS)
#1