Um General na Biblioteca

(Carla ScalaEjcveS) #1

Quando me dá vontade de contar e evoco uma das tantas peripécias de
minha vida aventureira, recorro de costume a versões que já testei socialmente,
com passagens que se repetem literalmente, com efeitos calculados também
nas divagações e nas pausas. Mas certas bravatas que nunca deixavam de
suscitar a simpatia de grupos de pessoas desconhecidas ou indiferentes, num
cara a cara com Cate ou Ilda eu já não conseguia que elas aceitassem, a não ser
com algumas adaptações. Certas expressões que com Cate eram moeda
corrente, com Ilda soavam falso; as tiradas espirituosas que Ilda agarrava no ar
e relançava, para Cate eu devia explicar tintim por tintim, ao passo que ela
apreciava outras que deixavam fria Ilda; às vezes era a conclusão a tirar do
episódio que mudava de Ilda para Cate, de modo que eu era levado a concluir
meus relatos de forma diversa. Assim, progressivamente eu ia construindo duas
histórias diferentes de minha vida.
Todo dia eu contava a Cate e Ilda tudo o que tinha visto e ouvido circulando
na noite da véspera pelos pontos de encontro e pelas reuniões da cidade: fofocas,
espetáculos, personagens em evidência, hábitos na moda, extravagâncias. No
meu primeiro período de grosseira indiferenciação, o relato feito para Cate de
manhã, eu o repetia tal e qual para Ilda, de tarde: pensava assim poupar a
imaginação que se tem de gastar continuamente a fim de manter o interesse
vivo. Muito depressa percebi que o mesmo episódio interessava a uma e não a
outra, ou, se interessava a ambas, os detalhes que me perguntavam eram
diferentes e diferentes eram os comentários e as opiniões que daí resultavam.
Assim, eu devia tirar da mesma fonte dois relatos bem distintos: e se fosse só
isso não seria nada; mas também devia viver de dois modos diferentes os fatos
de cada noite que, no dia seguinte, eu iria contar: observava coisas e pessoas
segundo a ótica de Cate e a ótica de Ilda, e julgava segundo os critérios de uma
e de outra; nas conversas, intervinha com duas réplicas à mesma frase de outra
pessoa, uma que agradaria a Ilda, outra a Cate; cada réplica provocava tréplicas
a que eu devia responder duplicando de novo minhas intervenções. O
desdobramento agia em mim, não quando eu estava em companhia de uma
delas, mas sobretudo quando estavam ausentes.
Meu espírito tornara-se o campo de batalha das duas mulheres. Cate e Ilda,
que na vida exterior se ignoravam, estavam todo o tempo frente a frente,
lutando por um território dentro de mim, disputavam-se, dilaceravam-se. Eu só
existia para hospedar essa luta de rivais enfurecidas, da qual elas nada sabiam.
Esta foi a verdadeira razão que me levou a partir de repente de xxx, para
nunca mais voltar.


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Eu era atraído por Irma porque ela me lembrava Dirce. Sentei-me ao lado
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