National Geographic - Portugal - Edição 221 (2019-08)

(Antfer) #1
PARTILHANDO O CAMINHO COM MIGRANTES 91

res de caixa ou para inalar venenos em fábricas de
produtos químicos. Os afegãos com que me cru-
zei olhavam para todos os continentes para fugir
à guerra. E assim sucessivamente.
E, contudo, eis o segredo desta epopeia de desas-
sossego humano: serão, provavelmente, as pessoas
que ficaram para trás que vão mudar o mundo.
As migrações internas representam por norma
êxodos do campo para a cidade. Arrastam 139 mi-
lhões de cidadãos na Índia. Na China, serão 250
milhões. Três quartos dos seres humanos que
deambulam pelo planeta circulam no interior das
fronteiras dos seus próprios países. Nascem no-
vas classes médias. As velhas dinastias políticas
são desestabilizadas. As megacidades explodem e
implodem. Sistemas inteiros de conhecimento (a
agricultura tradicional), acumulados ao longo de
milénios, estão a ser abandonados. A urbanização
destrói velhas normas de sexo e religião. Os re-
cursos ambientais encontram-se em queda livre.
Nada pode travar esta força inédita de anseios.
Comparada com tudo isto, a histeria que se sente
no Norte do globo devido aos migrantes interna-
cionais assemelha-se a uma história secundária e
sem interesse.
Caminhando pela Índia, juntei-me a torrentes
humanas que fluíam pelas estradas. Vi-as causan-
do engarrafamentos em paragens de autocarro.
Amontoando-se em cima de comboios. Os tra-
balhadores pobres andavam constantemente de
um lado para o outro. Mais tarde ou mais cedo, o
mundo precisa de aprender a mobilizar a energia
extraordinária que alimenta estas aspirações.
A jovem migrante que dirigirá o destino da nos-
sa espécie neste século viu-me chegar ao longe.
Não teria sequer 18 anos. Estávamos numa aldeia
de Bihar, um dos estados mais pobres da Índia e
eu seguia a caminho de Myanmar. Avançou até
mim com passos largos e apertou-me a mão.
“Este sítio é muito aborrecido”, queixou-se, me-
nos de um minuto depois. “Os meus professores
são aborrecidos. O que hei-de fazer?” Ri-me.
A ambição e a inteligência brilhavam naqueles
olhos. Em breve iria ombrear com outros e partir
para uma das cidades da Índia, competindo com
centenas de milhões de outros deslocados. Ne-
nhum muro seria suficientemente alto para a im-
pedir de avançar. Onde irá ela parar? Onde iremos
nós parar? Ninguém sabe. O aspecto importante
nesta estrada que partilhamos é continuar a ca-
minhar. E não ter medo. O caminho à nossa frente
pode ser a subir. Sugeri-lhe que fizesse os traba-
lhos de casa. Os sapatos dela eram resistentes. j

“Estamos há tanto tempo à espera da paz”,
lembrou o dono do café, Nemat Huseynov. Tinha
muitas ovelhas quando o conflito eclodiu em 1988.
Nem sempre é possível escolher os sapatos para
fazer uma longa caminhada.
Os refugiados e migrantes do planeta não pe-
dem a nossa piedade. Pedem apenas que lhes de-
mos atenção. Tiveram piedade de mim porque eu
continuaria a minha caminhada.


“POSSO PRATICAR o meu inglês?”
Eram rapazes e raparigas adolescentes no Pun-
jab. No ano passado. Ao quilómetro 11.000 da mi-
nha lenta jornada. Local: as escaldantes estradas
secundárias do celeiro da Índia.
Cinco, dez ou vinte jovens por dia emergiam de
casa, caminhando apressadamente para me apa-
nharem, depois de eu passar lentamente por eles.
Suando, arquejando, pouco habituados a exercí-
cio físico, desenferrujavam o vocabulário do seu
inglês durante algumas centenas de metros, antes
de desistirem de me acompanhar. Estavam a es-
tudar para os exames do Sistema Internacional de
Testes de Língua Inglesa. Ter boas classificações
era essencial para atingir os níveis de proficiên-
cia de inglês exigidos para obterem vistos para a
Nova Zelândia, Austrália, Reino Unido, Canadá
e Estados Unidos. Não havia nada de superficial
nestas conversas, tão antigas como o Paleolítico.
“Quem és?” “De onde vens?” “Para onde vais?”
Faridkot era uma aldeia encalhada num oceano
de searas de trigo. Quase todas as escolas privadas
de língua inglesa ali existentes estavam a prepa-
rar dezenas de milhares de jovens indianos para
abandonar a sua terra natal. Os campos do Punjab
já estão ocupados. Não há grande futuro na agri-
cultura. Os alunos de sucesso queriam juntar-se
aos 150 milhões de trabalhadores migrantes que
saltam fronteiras em busca de trabalho. Havia
uma evacuação em curso no Punjab.
“As únicas pessoas que ficam para trás são as
que não têm dinheiro para partir”, disse o proprie-
tário da escola de línguas, Gulabi Singh. Segundo
ele, emigrar custa cerca de 12.400 euros, ou seja,
23 vezes o rendimento médio anual na Índia.
Eu acabara de chegar da Ásia Central. Um com-
panheiro de caminhada do Usbequistão transpu-
nha regularmente a fronteira com o Cazaquistão,
sem documentos, para trabalhar nas obras. Mos-
trou-me cicatrizes deixadas por encontros com
a polícia. Na Quirguízia e no Tajiquistão, travei
conhecimento com migrantes que viajavam de
avião até Moscovo para trabalhar como operado-

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