o carrinho. Lá fora, tinha escurecido. O orvalho se depositara na grama. Eva
continuou lendo:
Agora você está em frente ao quadro-negro, alardeando as suas façanhas. Não tenho vontade de ouvir. Vou
dizer o que quero escrever: quero escrever sobre gente normal. Não quero me esconder nas moitas, de câmera
na mão, do jeito que você, pelo visto, fez. Não quero fuçar a lata de lixo dos outros, como você diz ter feito,
nem a cesta de roupa suja, como você acaba de contar que fez, para a classe toda rir. Deus, como você é
vaidoso! É o único, o último jornalista de verdade da Dinamarca, porque, segundo você, os outros são apenas
estrelas de reality show, jornalistas que vivem na terra encantada do jornalismo. Que se fodam você e seu
papo furado de Watergate, de jornalismo investigativo. Você é só um maldito lugar-comum. Quero escrever
sobre gente de verdade e sobre o destino que tem, e não há nada de mau nisso. Não quero escrever sobre o
que não funciona. Quero escrever sobre o que consegue fazer a vida funcionar, sobre o que mantém as
famílias unidas, e como não acabar sozinho no mundo.
Tinha realmente escrito aquilo em vez de anotar o que o professor dizia? Em caso
afirmativo, devia mesmo ter-se sentido ridicularizada e enxotada. Aquilo talvez
tivesse sido até o motivo inconsciente pelo qual tomou o caminho diametralmente
oposto, porque o susto tinha sido para sempre. Eva virou a folha. Nem sequer
anotara o nome do professor.
Lauritsen continuava dando voltas lá fora. “Que esquisito”, pensou Eva. Ele tinha
voltado? Talvez para podar as roseiras que havia bem em frente à janela do porão.
Não, ainda não era para tanto, ou... Eva olhou para cima, para as botas; botas
militares, identificou de imediato. Dois pares delas, portanto não era Lauritsen.
Lauritsen estava de sandálias. Primeiro ela ficou totalmente quieta, ouvindo.
Cochichavam, mas não conseguiu ouvir o que diziam. Quem eram? Os vizinhos?
Continuavam cochichando. A única coisa que captou foi isto: “...da parte de trás”.
Da parte de trás? O que queriam dizer? A parte de trás da casa, era claro. Eva
enfim ficou em pé e subiu a escada. Não viu ninguém pela janela da cozinha. Abriu
a porta que dava para a rua. Ninguém.
- Tem alguém aí?! – gritou.
A escuridão respondeu, vazia, muda.