A ansiedade é medo e desejo
João Jonas Veiga Sobral
Professor de Língua Portuguesa e orientador educacional
Fotos: Shutterstock
Nelson Rodrigues, com o humor ácido que lhe era pró-
ÕØ«ÊʃăØÂÊèʂʭHÜØ ̈èÂÃÊÊéëÊ×èÜ¡¼Ü«ăʈfÂ
ã«¢Ø ̈ÜØã«¢ØãØÃÂÃãʈfÂ¼Ê ̈ÕØÜØóØʃ
até a morte, o seu nobilíssimo rugido. E assim o sapo nasce
sapo e como tal envelhece e fenece. Nunca vi um marreco que
virasse outra coisa. Mas o ser humano pode, sim, desumani-
ÿØʢÜʈ¼Ü¡¼Ü«ăʃÊÂÜÂÊãÂÕÊʃ¡¼Ü«ăÊÂèÃÊʮʈ
Para o bem e para o mal, o ser humano é condenado
a fazer escolhas, seguir e abandonar caminhos e ideias,
acender velas para Deus e para o Diabo, inventar a si e
ao próprio mundo. O ser e o estar exigem de cada um
de nós assumir um ponto de vista, uma condição social,
uma identidade, uma margem do rio. Não se consegue
o tempo todo viver na neutralidade ou na isenção abso-
lutas. Não se interage com os outros sem que a afetação
mútua não se dê como fato e como interpretação.
Fazemos escolhas que nos representam e nos rea-
ăØÂÂʃÂÜã¡ÿÂÊÜÜʼ ̈Ü¡Øèè¼ÃãÜʡ
autoenganosas, em busca de alguma vantagem ou de
èÂÂÃÊØÕضèÿÊʈ"¼Ü«ăÂÊʢÃÊÜãÂÂÊÂèÃ-
do com a dissimulação, ora hipócrita ora necessária.
㡼ܫăÂÊÜÊÂèÃÊÊÂÕ«ÃãèØʃÊÂ
música, com a literatura, com a expressão artística em
¢Ø¼ʃʼ«Ã¢è¢ÂʃÊÂă¢èØÊʈ
Em nossa condenação capital, humana e diária de
¡¼Ü«ăØÊèØ«ÃóÃãØÊÂèÃÊÊÂÜÜʼ ̈Ü×è
fazemos, somos também sentenciados a recorrer ao lé-
ù«Ê¡ÿØüÜÜʼ ̈Ü×èØĄ«ãÂʃÜÊÃÂʃ
Ü被ØÂʃØăØÂÂÃÊÜÜÜ«ÃãëÊü«Üʈ
“Tenha um bom dia, cavalheiro.” Em uma simples fra-
se como essa, a depender do que ocorreu antes entre os
interlocutores, não se pode dizer que o desejo expresso
de “bom dia” seja a verdadeira intenção do enunciador.
Em O segredo do Bonzo, Machado de Assis vaticina: “... se
èÂÊèÜÕÊù«Üã«ØÃÊիëÊʃÜÂù«Üã«ØÃؼ«ʃ
ù«Üã«ØÃؼ«ʃÜÂù«Üã«ØÃÊիëÊʃÊüèÜÊ
×èÜèÜù«ÜãëÜÕؼ¼ÜéëÃÜÜØ«
opinião, não da realidade, que é apenas conveniente”.
«ØÊëʃă¢èؼ«Ã¢è¢ÂÕØÊ«ÃÃãÃÊÜãùãÊÜ
de Machado, é fundamental nesse jogo de ser e parecer,
uma vez que ela mesma é um recurso linguístico que con-
ãØ«è«ÕØ×è×諼Ê×èÜÃèëܶ衼ܫăÊ
ʡ¶×èÜ«ÿÊ«ãÊʃăØÂÊÊÃãØØ«ÊÊ×èÜăØÂʈ
Quando escolhemos uma determinada palavra para
expressar o que pensamos, podemos fazer um recorte de
seu sentido, conforme nosso gosto e intenção. O dicioná-
Ø«ÊA« ̈¼«ÜÜÜ«ÂăÃÕ¼óØÃÜ«ʂʭȺZÊ¡Ø«-
ÂÃãÊ¡Ü«ÊÕÜ×è«ÊʎĄ«Êʃ¢ÊëʃâéÜã«ʃÃÜ«ʃ
nervosismo. 2 Estado emocional frente a um futuro in-
certo e perigoso no qual um indivíduo se sente impoten-
te e indefeso.3 Desejo ardente ou veemente; anelo.4 Sen-
timento e sensação de intranquilidade, medo ou receio”.
Hă¼ËÜÊ¡ÊÕÃÜÊØØ«ÜãÊZÎØÃ9«Ø¹¢ØÕØÊ-
põe que ansiedade é um desejo daquilo que tememos,
um temor daquilo que desejamos. É um poder estranho
que agarra o indivíduo sem que ele possa desvencilhar-
-se dele, nem queira desvencilhar-se, pois tem medo
disso. Mas esse medo é também um desejo.
Evidentemente que outros já se debruçaram sobre o
tema e sobre a palavra, e óbvio que há outras acepções
e sinônimos para ela. O recorte feito por mim ilustra a
tese que defendo, ou seja, podemos escolher as pala-
vras e suas acepções para apresentar em uma enun-
ciação uma mensagem, uma ideia, mas também serve
para que se falseie o que se deseja apresentar também.
Quando se elege entre os sinônimos disponíveis para
ÃÜ« ÊÜ ÜÃã«ÊÜ ʭĄ«Êʃ ÂØ¢èØʃ ÂÊʃ
nervosismo, consternação”, busca-se, possivelmente,
apresentar o caráter negativo desse termo. Em contra-
partida, na escolha das acepções “rapidez, voracidade,
precaução, prevenção”, pode-se desejar atribuir à an-
siedade um valor positivo.
Nem sempre, nas delicadas relações humanas, pode-
mos ser transparentes nas enunciações e revelar nossa
cara lavada, como sugere Caeiro, heterônimo de Fer-
nando Pessoa: “E raspar a tinta com que me pintaram
os sentidos / desencaixotar as minhas emoções verda-
deiras / Desembrulhar-me e ser eu”.
Neste mundo cheio de intenções e gestos, somos con-
denados, como dizia o Nelson, a falsear a si e ao mundo.
E a palavra é a nossa máscara.