Go Outside - Edição 159 (2019-06 & 2019-07)

(Antfer) #1

68 GO OUTSIDE 06/07.19


napana. Laís ministrou uma aula de educação


ambiental para cerca de 30 alunos com idades


entre 6 e 14 anos, plantando a sementinha do


otimismo por um mundo mais sustentável.


Karina deu uma aula de primeiros socorros.


A ação foi toda planejada. Laís e Ed são


voluntários no Instituto Dharma, uma orga-


nização que já realizou expedições médicas e


outros projetos solidários em comunidades


carentes de várias partes do mundo, entre o


Piauí e a Índia. O Dharma foi idealizado em


2015, quando Karina e o fotógrafo Andrei


Polessi juntaram forças para ajudar parte da


população do Nepal que, naquele ano, tinha


sido arrasada por um terremoto de mag-


nitude 7,8. Com a publicação de um livro


de fotos que ambos tiraram daquela região


entre 2007 e 2013, conseguiram angariar


US$ 10.000, utilizados na construção de


uma escola no Vale de Patle.


Em 2015, enquanto os turistas ainda ten-


tavam deixar o Nepal com medo de um novo


tremor, Karina se mandava com uma ba-


gagem enorme de medicamentos e manti-


mentos para acudir os habitantes do Hima-


laia. “Eles me inspiram muito, são exemplos


de humildade, força e resiliência”, diz. Mais


do que isso, daqui do Brasil Karina não es-


tava conseguindo se comunicar com Pemba


Sherpa, o que a deixou ainda mais ansiosa


para partir. Pemba é o nepalês que a guiou em


suas expedições ao Everest e que já esteve no


topo da maior montanha do mundo “apenas”


oito vezes. Só quando a brasileira já estava no


Nepal é que Pemba fi nalmente atendeu o tele-


fone, confi rmando que ele e sua família esta-


vam bem. “Somos como irmãos”, diz ela.


Karina e Pemba escalaram o Everest pela


face sul em 2013 e fi zeram um pacto fraterno:


iriam abrir mão do cume – além de arrisca-


rem as próprias vidas – para tentar resgatar


um montanhista que estava em situação ago-


nizante. Eram três horas da manhã, e a dupla


estava havia sete horas na tentativa de con-


quistar a maior montanha do mundo. “Além


disso, estávamos mais de 30 horas na ‘zona


da morte’ [acima de 7.500 metros], vendo se o


tempo melhoraria”, conta. “As nuvens deram


uma trégua. Não era nem janela de cume, mas


poderia ser nossa única chance, porque o oxi-


gênio suplementar estava acabando.”


Karina não conseguiu passar batido e


não ajudar. Mas decidiram que tentariam


levar o montanhista em apuros para baixo,


ela sabia que estava abrindo mão da sua


própria expedição. Por sorte, a equipe dele


chegou após alguns minutos, assumindo o


resgate e conseguindo tirá-lo da monta-


nha ainda com vida.


EM SEU JURAMENTO, Hipócrates, o
“pai da medicina”, diz que o ofício deve ser
exercido com consciência e dignidade. Ka-
rina traz isso no sangue. Segundo ela, sem-
pre foi um sonho do pai ser médico, algo que
nunca aconteceu. “Meu pai começou a tra-
balhar aos 7 anos de idade como engraxate
na feira”, diz orgulhosa. “Depois foi office
boy em uma transportadora.” Quando Ka-
rina nasceu, ele já tinha sido promovido a
motorista. E suou muito até comprar um ca-
minhão, crescer no ramo e conseguir abrir a
própria transportadora.
Todos dizem que Karina puxou o pai.
Além da paixão pela medicina, a capaci-
dade de suportar baixas temperaturas (algo
imprescindível para qualquer montanhista)
é uma herança paterna. Ao cruzarmos o
Passo Salkantay, a mais de 4.600 metros de
altitude, fomos pegos por uma frente fria e,
durante o dia inteiro, andamos literalmente
dentro de uma nuvem. Vestindo um poncho
impermeável e um chapéu de abas largas,
seu pai, João, além de estar aclimatado ao ar
rarefeito, também não achou necessário co-
locar luvas e gorro, mostrando um desem-

penho incrível. “Pelo visto o senhor seria
um ótimo montanhista”, digo.
João segue a passos lentos, enquanto
Karina monitora seus movimentos com um
frequencímetro. Ela não quer que o coração
dele passe muito dos 140 batimentos por
minuto. “No começo deste ano, ele teve um
infarto”, ela me revela. Antes disso, sempre
cautelosa e determinada como uma médica
taurina, já se sentia responsável pela saúde
do pai. “Descobri um câncer de pele nele e,
todo ano, eu o obrigo a fazer um check-up
geral”, justifi ca. “Meus pais são as pessoas
mais importantes para mim.”
Em certo momento da trilha, Karina
pergunta ao pai qual tinha sido a sua maior
aventura até então. “Aventura? Eu nunca
vivi uma grande aventura”, ele responde
numa boa, sem se importar o mínimo em
ter levado até hoje, aos 61 anos, uma vida
nada esportiva.

A mãe, Regina, tem um currículo mais
atlético – completou três maratonas e algu-
mas meias maratonas. Porém a pessoa mais
divertida de toda a viagem de repente entrou
no “modo sobrevivência”, logo depois do
Passo Salkantay. “Nunca me senti tão mal",
diria depois. “Eu realmente pensei que es-
tivesse morrendo.” Não foi por acaso: cerca
de 80% dos escaladores que “perdem para a
montanha” morrem na descida.

DURANTE OS JANTARES nos lodges,
predominava um clima de descontração, que
não raramente se transformava em momentos
de recordações familiares. Descubro que, aos
9 anos, Karina ia nadar escondido dos pais na
represa de Capela do Alto, no interior de São
Paulo, onde os padrinhos tinham um sítio. A
garota não parava quieta. Antes ainda, aos 4
anos, enquanto as irmãs e as amigas brincavam
de casinha, ela amarrava cordas para chegar ao
telhado das habitações de brinquedo. “Karina
também adorava subir no abacateiro, e então a
gente era obrigado a usar um bambu para ser-
vir comida a ela”, conta a mãe. Regina também
lembra que, em São Paulo, a fi lha andava em

cima do muro da casa onde moravam, só para
acessar uma parte de onde era possível pular na
piscina de um lugar “privilegiado”.
Em passeios de barco, ela achava ente-
diante fi car no convés. E, quando os pais se
davam conta, a menina já estava nadando em
alto-mar. Apesar de montanhista convicta,
Karina diz constantemente que a água é o seu
elemento. “Eu continuo praticando esportes
como mergulho em caverna, apneia, caiaque
de corredeira...”, lista. Em 2016, nas Bahamas,
ela não utilizou nenhuma proteção para nadar
com tubarões de diversas espécies. Tudo para
alertar sobre a matança desenfreada que está
causando a extinção desses animais. “Não
importa se é no mar ou na montanha, são lu-
gares onde sinto o poder da natureza agindo”,
diz. Depois de se conectar com o ambiente,
Karina começa a ser desafiada. “É quando
fi nalmente saio da minha zona de conforto e
me descubro um pouco mais”, explica.

“Como médica, entendo os LIMITES DO MEU CORPO,


sabendo evitar chegar a um ponto que seja IRREVERSÍVEL.


Se eu sentir que NÃO VOU CONSEGUIR,


simplesmente volto”, diz Karina.


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