84 GO Outside 06/07.19
Julie ellisO
n“tudo ficou
em silêncio”,
lembra-se nikki daprimeira vez em queescalou. “eu não pensavamais na escola. eu nãopensava mais nas minhasquestões de identidade.ficava totalmentefocada como nunca haviaestado antes.”Depois do jantar, o casal bebeu drinques
no Red Door, um de seus bares favoritos, no
centro de Salt Lake City. Sentados em um
canto do pátio, Nikki estava nervosa, mas
relaxou depois de alguns goles de coquetel.
Pegou o telefone e mostrou para Cheri umas
fotos de uma mulher de cabelos compridos
e maquiagem, sorrindo e dançando em um
club em Las Vegas.
“Quem é?”, perguntou Cheri.
“Eu”, respondeu Nikki.
Àquela altura, os dois estavam casadoshavia 21 anos. Eles se conheceram no outono
de 1995, quando Nikki, então com 19 anos,
estava servindo no Exército em Fort Hood, no
interior do Texas, e a também mórmon Che-
ri Stumm, de Spokane, Washington, passava
férias de verão na casa da irmã.
Nikki dava uma única flor para Cheri
todo sábado quando estavam namorando.
“Nós nos divertíamos incrivelmente”, con-
ta Nikki. “Eu não conseguia ser eu mesma
comigo, que dirá com outra pessoa. Mas eu
conseguia ser mais eu com ela do que com
qualquer um que já conheci.” Eles se casa-
ram na primavera seguinte.
Antes de conhecer a futura esposa, Nikki
encontrou refúgio na vida militar e sua dis-
ciplina. Havia o treinamento físico e tático e
a história militar. Mas ela dava duro para pa-
recer masculina. Quando corria, mantinha
os antebraços travados – não queria parecer
desmunhecar. Mudou a forma como falava,
adotando algumas das palavras e jeito de se
expressar de outros recrutas.
Ao mesmo tempo, sempre tinha vonta-
de de parecer feminina – usava meias finas
até o joelho por baixo do coturno para evi-
tar bolhas (nos anos seguintes, ela passou a
depilar as pernas como alguns corredores
homens e, quando seus amigos escaladores
pintavam as unhas dos pés para se divertir,
ela também pintava). “Naquele momento,
eu me sentia um cara, como nunca havia me
sentido. Eu me convenci de que estava bem,
mas não durou muito.”
Em 1997, o casal se mudou para Salt Lake
City, e Cheri começou a trabalhar em perío-
do integral para uma grande empresa, onde
ainda trabalha como analista de contratos.
Nikki foi à Universidade de Utah, com uma
bolsa dos militares da reserva. A faculdade
foi uma revelação, expondo-a a uma série
de coisas que não havia visto na vida de mi-
litar, como a existência de uma comunidade
queer. Com a internet ainda dando seus pri-
meiros passos, encontrar informação sobre
transgênero não era fácil. Nikki lia sobre
clubs em algumas cidades grandes, onde
mulheres trans mais velhas assumiam o
papel de mães para as recém-chegadas. Ela
não sabia de nada disso em Utah.
Estando a poucas horas de áreas de escala-
da como Little Cottonwood Canyon, Maple
Canyon, Joe’s Valley e American Fork, Nikki
começou a escalar obsessivamente. Todas as
férias do casal tinham que ter escalada.
Em 2001, Nikki foi contratada como com-
pradora de equipamentos da Liberty Moun-
tain e evoluiu na empresa até se tornar gerente
de marketing. Era o trabalho dos sonhos, que
incluía viagens à Europa, fotografar escalado-
res e gerenciar atletas profissionais. Com os
dois salários, o casal conseguiu comprar uma
casa grande e começou a tentar ter filhos.
Tudo ia bem, mas, sempre que Nikki faziaalguma apresentação em um ginásio ou loja
de equipamentos, se sentia uma fraude. “Era
uma confusão dentro de mim”, lembra. “Pen-
sava coisas do tipo: ‘Bem, se vocês soubessem
quem eu sou de verdade, não estariam aqui...
Se soubessem quem eu sou mesmo, vocês me
dariam um soco na cara. Se soubessem quem
eu sou, teriam nojo de mim’.”UMA NOITE EM 2003, Nikki e Cheri saí-
ram para jantar, e Nikki confessou que era
transgênero. Ela se lembra de tentar con-
fortar Cheri, dizendo que nunca faria a
transição – que nunca viveria publicamen-
te como mulher ou faria terapia hormonal e
cirurgia. Lembra-se de ter afirmado que era
mais forte do que as outras pessoas trans-gênero. Não sou eu. Eu servi Exército, sou
escalador, sou homem.
Cheri não se lembra dessa noite. Mas ela
se recorda de quando, anos depois, sua cara-
metade se ofereceu para fazer o jantar e pe-
diu que ela saísse de casa por algumas horas.
Quando Cheri voltou, foi à cozinha e encontro
Nikki de vestido e maquiagem.
“No fundo, pensei: ‘Beleza, é isso que ele
precisa – se vestir assim uma ou duas vezes
por ano”, conta Cheri. “Eu não associei o há-
bito a ser transgênero, não sabia o que signifi-
cava.” Várias vezes Cheri voltava para casa de
uma viagem e notava as persianas fechadas.
Eles nunca fechavam todas as persianas. “Eu
ficava imaginando se ela tinha se vestido e
ficava feliz que havia botado para fora aquela
necessidade do seu corpo.” Aqui-
lo deixava Cheri desconfortável,
mas ela não queria encarar as
implicações mais graves. Sua es-
tratégia era: não fale sobre isso,
nunca aconteceu.
O casal estava sentado no
Red Door no verão de 2017
quando Nikki disse a Cheri que,
depois de algumas semanas de
terapia intensiva, ela precisava
explorar a vida como mulher.
Nenhuma das duas sabia o que
essa fase poderia significar para
seu relacionamento.
Durante a terapia, quando
Cheri estava viajando, Nikki es-
perava encontrar a resposta para
uma única pergunta: “Será que
eu consigo ser feliz vivendo como
Nathan?”. Após umas poucas
sessões, o terapeuta, que já ha-
via trabalhado com várias outras
pessoas trans, perguntou: “Se
você tivesse habilidades mági-
cas e pudesse mudar tudo com um estalar de
dedos, viraria mulher?”. Sem hesitação, Nikki
disse que sim. Falar isso em voz alta pela pri-
meira vez fez com que ela percebesse que não
conseguiria mais viver como homem.
Entretanto decidir que ela tinha que fa-
zer a transição e, efetivamente, passar por
isso eram duas coisas bem diferentes. Pela
extensa pesquisa de Nikki, parecia que ela
teria que ser mais baixa, “mignon” e mais
“parecida com uma mulher” para sobrevi-
ver. Se não fosse, sua vida seria cheia de dis-
criminação. Nikki tem 1,93 metro, ombros
largos e músculos de escalador.
Além disso, ela havia lido que a maio-
ria dos casais em que um dos parceiros faz
a transição não permanece junto. DuranteGrupo Unico PDF Passe@diante