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Não existe um protocolo de como lidar
com isso. Nikki vai de exultante a desapon-
tada e de volta à alegria várias vezes. Depois
de algumas horas, ela se cansa e, em qualquer
momento em que não haja uma reação cla-
ramente positiva, chega à beira das lágrimas.
Ela nota estranhos sussurrando e apontando
enquanto ela passa, e algumas vezes ela pre-
cisa ir ao banheiro chorar.
No último dia do evento, Nikki vai tomar
um café com Deanne Buck. As duas manti-
veram contato durante a transição e agora
conversam a respeito das reações que Nikki
teve que encarar na feira – as boas, as más
e as de julgamento. Deanne nota que Nikki
está usando acessórios e que talvez nunca
tenha tido um bom lugar para procurá-los
e pergunta: “Vamos às compras?”. Nikki
achou que ela tivesse sugerido sair dali e ir
para o centro de Denver, mas Deanne a leva
até o estande da Bronwen Jewelry, marca do
Oregon. “Minha amiga faz peças lindas, e eu
acho que você vai gostar”, explica.
Nikki conhece a designer Bronwen Loda-
to, e elas falam sobre a difi culdade em en-
contrar acessórios e joias que caiam bem no
punho e no pescoço dela. Bronwen se ofe-
rece para fazer peças sob medida, e algumas
semanas depois Nikki recebe um pacote na
porta e um e-mail lhe convidando para ser
embaixadora da marca.
Sua parceria com a Bronwen Jewelry é
apenas o começo de uma mudança radical
na trajetória da carreira de Nikki. Ela ainda
trabalha como fotógrafa e faz a Pull Media,
mas já foi convidada para mais de uma de-
zena de eventos de escalada – alguns espe-
cifi camente para mulheres – para apresentar
palestras e fazer parte de mesas-redondas.
Depois dessas aparições, ela frequentemente
recebe mensagens particulares de pessoas
queer que estão na luta, inclusive com sua
própria identidade de gênero. Ver Nikki em
pessoa, explicam, faz com que elas se deem
conta de que há outros escaladores trans por
aí e que a transição é possível.
Em março, Nikki assinou um contrato
para ser embaixadora da REI – vai ministrar
clínicas, dar consultoria para as políticas da
empresa e fazer palestras em eventos. “No
fi m das contas, ela está abrindo caminho para
uma comunidade outdoor mais vibrante e in-
clusiva”, diz Nicole Browning, gerente de pro-
gramação de marketing da REI, “para mudar a
narrativa a respeito da igualdade de gêneros,
para nivelar o campo outdoor como conhe-
cemos. Dar voz a Nikki e sua história é uma
forma de ajudar as pessoas a terem uma co-
nexão mais profunda com alguém cujas vida e
experiências são diferentes, mas que também
podem ter muito em comum.”
Nikki está pronta para ser ouvida. “Eu
atrasei essa decisão por muito tempo devi-
do ao medo”, disse, da primeira vez em que
falou comigo. “Posterguei a transição por-
que não tinha ninguém em quem me ins-
pirar. Porque senti que não tinha voz. Mas
agora não vou mais me forçar a ser alguém
que não sou. Se eu puder ajudar a causar
uma mudança verdadeira no mercado ou-
tdoor e em outros, estarei lá.”
NIKKI E EU voltamos para a casa dela. Ainda
está escuro às 5h30 da manhã de outubro em
2018, quando deixamos a casa para ir à Uintas.
Ela viu gelo se formando em uma via chamada
Golden Spike quando passava pela área alguns
dias antes. Essa é uma das minhas estações
favoritas. Todo ano, ela gosta de ser a primeira
pessoa a escalar gelo nos estados continentais
dos Estados Unidos. “Você está empolgada?”,
pergunta o parceiro de escalada, Jason Hall,
enquanto montam a mochila para entrar na
trilha. “Estou sempre empolgada para escalar
gelo”, responde com um sorriso antes de sair
para a trilha nevada.
Dessa vez, está preparada para o frio, com
camadas extras e luvas quentes. Suas roupas
são quase todas femininas, mas as botas ainda
são masculinas. Provavelmente sempre serão.
Um longo rabo de cavalo aparece por cima do
casaco, e brincos de turquesa podem ser vis-
tos logo abaixo do gorro.
No gelo, Nikki está totalmente em seu ele-
mento. Aqui, nas montanhas do seu quintal,
fi nalmente está escalando gelo com um par-
ceiro que sabe quem ela é de verdade. A cada
movimento das piquetas, gelo e neve espirram
no seu rosto, mas ela mantém a cabeça ergui-
da e o sorriso aberto.
Ainda que sua nova vida sob os holofotes
seja difícil – ela ainda é a pessoa tímida e re-
servada de sempre –, sente uma conexão que
nunca teve antes. Pode se abrir completa-
mente, coisa que nunca conseguiu enquanto
vivia como Nathan. Ser uma defensora dos
direitos trans não era necessariamente parte
do plano, mas está desenvolvendo esse papel.
“A vida está cada vez melhor”, revela.
“Mas ainda é um desafi o.” Ela já foi tocada
ou cantada por homens querendo fazer sexo
por dinheiro ou drogas. Quase diariamente,
ela é tratada pelo pronome errado é obser-
vada e às vezes assediada andando pela rua.
Todos os dias, tem novos encontros que vão
do bom ao ofensivo, e é obrigada a decidir
quando ignorar o menosprezo e quando se
impor. “É incrível ver em quem essa pessoa
se transformou, alguém que você nunca
imaginou existir”, diz Cheri. “Ela esteve en-
terrada por tanto tempo.”
Para Cheri, a parte mais difícil foi se
despedir de Nate, a pessoa por quem ela se
apaixonou há quase 24 anos. Ela ainda tem
dias bons e dias ruins, alguns em que pre-
feriria fi car entocada em casa em vez de sair
como um casal e encarar os olhares. E ainda
não saiu com a camiseta que sua amiga lhe
deu, que diz: “Eu não sou lésbica, mas mi-
nha esposa é”. Mas aprendeu a se importar
menos com o que as outras pessoas pensam,
a baixar a guarda e viver como quer. “Gastei
muita energia tentando me assegurar de que
todo mundo estava feliz com o que eu fazia,
em vez de fazer o que eu queria”, diz Cheri.
“Não tenho mais medo.”
Cheri ainda tem difi culdades com o aspec-
to romântico do seu relacionamento (“Eu não
tenho atração nenhuma por mulheres, mas
sinto atração por Nikki como pessoa”, diz). Ela
e Nikki dizem que nunca foram tão próximas.
Não há mais segredos. Antes, elas fi cavam tão
preocupadas em magoar uma à outra que não
tinham discussões profundas. Agora podem
conversar. Falar sobre medo ou julgamento,
em um esforço de entender alguém que é di-
ferente de você – é um conceito simples em
teoria, mas difícil na prática. Usar palavras
do jeito certo pode ser a única coisa que evi-
ta o suicídio de uma pessoa trans ou que guia
um adolescente confuso com seu gênero.
Três palavras salvaram a vida de Nikki – e que
agora estão tatuadas no seu punho esquerdo:
“Apareça e seja vista”.^
JULIE ELLISON foi editora-chefe da revista
Climbing. Com suas parceiras da Never Not
Collective, está trabalhando em um fi lme sobre
as experiências de Nikki Smith como escalado-
ra transgênero.
06/07.19 GO Outside 89
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