A PRIMEIRA VOLTA AO MUNDO:OREGRESSO 81
sobreviventes e os aguerridos marinheiros despe-
diram-se a chorar, talvez pressentindo que a gran-
de maioria nunca mais voltaria a ver-se. Esta cena
emotiva é descrita por Pigafetta, o qual, embora
mais tarde omitisse Elcano das suas crónicas,
optou por embarcar com ele a bordo da Victoria.
A sorte de Elcano é conhecida, mas raramente
se conta o que aconteceu a Espinosa e à Trini-
dad, que partiu três meses depois da sua compa-
nheira e na direcção oposta. A sua rota até terras
americanas foi extraordinariamente intuitiva,
mas os ventos e as tempestades impossibilita-
ram a travessia. Três dezenas de homens morre-
ram, segundo o testemunho de Ginés de Mafra.
Os restantes não tiveram outro remédio senão
regressar a Tidore, ao amparo de Almançor, para
de novo repararem uma nau ferida de morte.
Nunca lá chegaram. Os portugueses intercepta-
ram-nos em Ternate e a Trinidad foi desmante-
lada e afundada, depois de resgatada uma carga
de cravinho que, nos mercados, valia mais do
que as vidas dos homens que a transportavam.
Submetidos a maus-tratos, apenas três dos tri-
pulantes regressaram a Espanha cinco anos
mais tarde, em 1527, repatriados pelos portugue-
ses. De uma forma mais dolorosa e indigna, tam-
bém eles deram a volta ao mundo.
ELCANO FAZ-SE AO MAR com um objectivo compli-
cado: sem conhecer os ventos que regem mares
pouco navegados, pretende navegar fora das rotas
portuguesas, tarefa que deveria ser feita sem esca-
las em terra. No seu périplo, descobre as Molucas
do Sul, onde “se dão a noz-moscada e a pimenta”,
como referirá no relatório apresentado ao sobera-
no. Em meados de Fevereiro de 1522, parte de
Timor para uma viagem em mar aberto de mais de
vinte mil quilómetros. A partir dali, o seu único
ponto conhecido é o cabo da Boa Esperança. O his-
toriador José Luis Comellas afirma que, com gran-
de intuição, Elcano segue uma rota ortodrómica
quase perfeita, ou seja, traça o caminho mais curto
quando se cruza a superfície de uma esfera de um
ponto até outro. Se tivesse navegado de maneira
menos eficaz e se tivesse desviado mais para sul,
talvez tivesse descoberto a Austrália.
São muitas as decisões que a tripulação se vê
obrigada a tomar. Decisões que põem em jogo a
própria vida e que, segundo Alberdi, “Elcano sub-
mete à votação da tripulação, sem imposições;
disposto a acatar a opinião da maioria”. A primei-
ra votação prende-se com a necessidade de fazer
escala em Madagáscar, o que significaria a rendi-
ção aos portugueses. A tripulação decide não o fa-
zer. A segunda votação decorre durante a penosa
travessia. Ao dobrarem o cabo da Boa Esperança,
têm de decidir se devem alijar a carga de cravinho
ao mar, com o objectivo de tornar a nau mais li-
geira. Uma vez mais, votam pela negativa: regres-
sar sem as valiosas especiarias seria reconhecer o
fracasso de uma expedição que já só navega para
garantir a sobrevivência e a dignidade.
A terceira decisão é tomada quando o mais
difícil parece já estar superado. Com o calor e as
calmarias da zona equatorial, chegam a sede, a
desidratação, a fome e o escorbuto. Elcano resu-
me a situação ao rei de maneira lacónica: “Entre
o cabo da Boa Esperança e as ilhas de Cabo Ver-
de, morreram-nos vinte e dois homens”. O terrí-
vel paradoxo é que aqueles homens moribundos
jaziam tombados em cima de 27 toneladas de
cravo-da-índia, extraordinariamente rico em vi-
tamina C. Pigafetta e Elcano salvaram-se, sem o
perceberem, porque comeram marmelada, doce
reservado aos oficiais, mas o resto da tripulação
encontra-se à beira da exaustão. Assim, quando
entre Junho e Julho de 1522 se faz nova consul-
ta, perguntando se é pertinente atracar em Cabo
Verde, a tripulação decide parar. Desta vez, os ho-
mens já não aguentam mais.
Em Cabo Verde, tecem uma intriga, dizen-
do que regressam das Américas e se atrasaram
em relação à frota devido a uma tempestade.
O plano resulta num primeiro aprovisionamen-
to, mas não no segundo. Não se sabe ao certo o
que aconteceu: talvez alguém mencione a morte
de Magalhães, da qual ninguém no mundo tem
notícia; talvez alguém tente (já sem dinheiro,
nem outros bens para trocar por mercadorias)
pagar as suas compras com o valioso cravinho.
A mentira é descoberta. “O governador apresou-
-me o batel com 13 homens e queria levar-me
com todos os homens numa nau que regressava
a Calecute vinda de Portugal, dizendo que só o
Rei de Portugal podia descobrir a Especiaria”,
conta Elcano a Carlos V. Aquele que será o artífi-
ce da primeira volta ao mundo vê-se obrigado a
fugir e a lançar a nau Victoria numa corrida de-
senfreada para escapar à perseguição dos portu-
gueses. Os ventos são de tal maneira contrários
que não podem sequer sonhar com uma escala
nas Canárias. São obrigados a rumar aos Aço-
res, rumando depois ao continente, dobrando
o cabo de São Vicente, antes de avistarem San-
lúcar de Barrameda. Certamente,pareceu-lhes
uma miragem. (Continua na pg. 88)