National Geographic - Portugal - Edição 223 (2019-10)

(Antfer) #1
NATIONALGEOGRAPHIC

L


LONGE DE TUDO E DE TODOS, a pequena povoação do
Calvo foi perecendo aos poucos. Muitos saíram, nenhum
voltou. O último resistente, o único habitante da aldeia,
fechou os olhos definitivamente na década de 1960.
Percebe-se: aqui já houve vida, mas agora não há – pelo
menos na forma humana. O lagar, de grandes dimensões,
é um testemunho vivo de que aqui já se trabalhou. Em
tempos, produziu-se azeite. Nasceu-se, viveu-se. Mor-
reu-se. Lá mais ao fundo, onde o riacho corre com inten-
sidade, estão os escombros das velhas casas. Hoje, a
aldeia do Calvo é um lugar fantasma, votado ao aban-
dono. Está lá, mas só guarda memórias, o que o torna um
sítio fascinante para os recém-chegados, de mochila às
costas, desejosos de compreender in loco uma lição sobre
a desertificação do interior e sobre a dureza da domesti-
cação da paisagem na serra transmontana.
E, no entanto, sem a sombra do ser humano, quer a
aldeia quer a área envolvente fervilham de vida: as espé-
cies animais e vegetais colonizam vagarosamente o lugar.
Ninguém diria que, volvidos tantos anos após o seu aban-
dono, a aldeia do Calvo voltaria a ter pessoas. Não são
habitantes formais, nem estão propriamente de regresso.
São, sim, visitantes que chegam a pé ou de bicicleta. Não
espanta que este lugar de fim de mundo seja agora pro-
curado pelos exploradores do século XXI. E este tornar-
-se-á um lugar emblemático da Ecovia do Rabaçal.
O projecto para atrair turismo de natureza ao concelho
de Valpaços começou a ser delineado em 2014 – até então,
a cidade usufruía das vagas regulares de turismo

associadasà FeiradoFolar,à FeiraFrancae à Feira Nacio-
nal do Azeite e, claro, ao amplo movimento de turismo
da saudade. O projecto arrancou no fim de 2015, estrutu-
rando uma estratégia para o território que o diferenciasse
da região envolvente. Se é a geologia que condiciona a
actividade humana nas imediações do rio Rabaçal e se a
montanha e o planalto forçam o ser humano a encontrar
vias criativas para extrair sustento da terra, essa teria de
ser a narrativa do projecto ambiental – não voltar as cos-
tas ao rio e à serra. Pelo contrário. Mergulhar a fundo neles.
O município de Valpaços juntou uma equipa de espe-
cialistas e meteu mãos à obra. Durante três anos, foi feita
prospecção de velhos caminhos que poderiam ser trans-
formados em trilhos e de zonas escondidas da região
que, devidamente requalificadas, atrairiam viajantes. O
resultado está agora à vista. “O projecto começou quando
estávamos a aferir as disponibilidades turísticas da região
e apercebemo-nos de que tínhamos o enquadramento
perfeito para uma Ecovia”, esclarece Amílcar Castro
Almeida, presidente da Câmara Municipal de Valpaços.
O vereador Jorge Mata Pires acrescenta: “Primeiro, pro-
curámos parcerias, encontrando um parceiro científico
no Instituto Politécnico de Bragança. Com a Media 360º,
desenvolvemos uma linguagem coerente nos painéis,
trilhos e centros interpretativos. A sinalética e marcação
de percursos foram desenvolvidas pela FLOEMA, uma
empresa com vasta experiência nesta área.”

O RIO RABAÇAL, que nasce na Galiza, é um rio selvagem
que corre encaixado num vale, caracterizado a montante
pela praia fluvial anexa ao parque de campismo e, a
jusante, pelos maciços de granito. Depois de estudar há
largos anos na Grã-Bretanha e de conhecer in loco um
dos marcos mais significativos do património cultural
europeu, Jorge Mata Pires não resiste a comparar: “Posso
dizer que a Lage das Medas é o ‘Stonehenge’ português!”
Talvez com piores relações públicas até ao momento,
mas igualmente apaixonante e com uma velha história
de relação do ser humano com a paisagem.
Os três percursos que constituem a Ecovia são linea-
res e têm em comum o ponto de partida na praia fluvial
do parque de campismo. Distribuem-se pela chamada
Terra Quente, onde predomina um dos grandes produ-
tos que dá fama à região, o azeite. Avançam pela cha-
mada Terra de Transição, onde predominam o olival e
a vinha. E penetram na Terra Fria, marcada pela maior
mancha de castanheiros de variedade judia da Europa.
“Procurámos criar algo que englobasse a biodiversidade
num enquadramento paisagístico e que fosse apelativo
para as pessoas – incluindo as comunidades da região”,
explica Amílcar Castro Almeida. Para que os percursos
não desencorajem os potenciais interessados, estão em
curso diversas estruturas de apoio, que facilitem as cami-
nhadas e agilizem as pausas.

GRANDE ANGULAR | ECOVIA DO RABAÇAL


TEXTO DE PAULO ROLÃO FOTOGRAFIAS DE PEDRO REGO
Free download pdf