ROBERTO DAMATTA - Um eclipse com índios
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Jornal O Globo/Nacional - Opinião
quarta-feira, 25 de maio de 2022
Cenário Político-Econômico - Colunistas
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Autor: ROBERTO DAMATTA
Eclipse vem do grego e significa a ação de abandonar
ou um desaparecimento. Testemunhamos um eclipse
lunar no dia 15 deste mês, com ápice na madrugada do
dia 16. Ele me levou ao ano de 1961, quando, em 26 de
agosto, meu companheiro Julio Cezar Melatti (hoje
professor emérito da Universidade de Brasília) e eu -
ambos na casa dos 20 anos - éramos iniciados no
trabalho de pesquisa antropológica e sérios, mas
inocentes, tentávamos compreender o estilo de vida de
'índios' regionalmente chamados de gaviões, um grupo
de língua jê timbira, na Amazônia paraense.
A Wikipédia informa que 'o eclipse lunar de 26 de
agosto de 1961 foi um eclipse parcial, o segundo e
último de dois eclipses lunares do ano. Teve magnitude
penumbral de 1, 9330 e umbral de 0, 9863. Duração
total de 186 minutos. A Lua estava quase coberta pela
sombra da Terra num eclipse parcial muito profundo,
que durou três horas e seis minutos. Com 99% da Lua
na sombra no eclipse máximo, foi um evento
memorável. (... ) Também coincidiu com o perigeu
lunar, ponto mais próximo da Terra, deixando a Lua
Cheia cerca de 14% maior e um pouco mais brilhante
que no apogeu. Ou seja, o eclipse parcial se deu com
uma superlua'.
Tal é a linguagem 'científica' do fenômeno. Eis,
entretanto, o que ouvi dos nativos e transcrevi no meu
diário de campo:
- A outra grande experiência - escrevi -foi um eclipse da
Lua. Já estávamos dormindo, quando fomos acordados
por Pembkui, que, como toda a aldeia, dizia que Katire
(Lua) havia morrido! Quando ela chegou na minha rede,
falou em tom patético: 'Lua morreu!'. Imediatamente me
levantei e comentei com os homens que, ao que parece,
esperavam minha opinião. Quando notaram que
concordava, Apororenum e Kaututere saíram de casa e,
ao lado dos outros, com achas de lenha cujas pontas
estavam em brasa nas mãos, cantaram e oscilaram as
achas incandescentes em direção à Lua. Eram canções
que chamavam a Lua zangada Lua de volta - (hoje vou
ver se tomo nota da letra); e, quando tudo acabou,
Kaututere prometeu caçar para Katire muito porco,
veado, anta e outros animais... Apororenum explicou
que, se a Lua morrer, tudo morria, pois, no escuro, sem
Sol e Lua, eles comeriam gravetos. O fogo não
acenderia e não haveria caça, pois, sem luz, nós
ficamos igual a Megaron (alma dos mortos). Hoje vou
me aprofundar mais. O fato é que foi uma experiência
fabulosa. Depois fomos dormir e de madrugada acordei
novamente, desta vez com o maracá e a cantiga de
Apororenum. Hoje vou caçar para Katire.
Eis, num texto telegráfico, duas visões de um eclipse e
um exemplo de como o humano engloba tudo entre os
'índios'.
Esse englobamento de Lua e Sol, bem como de
estrelas, pelo cultural tem inspiração no trabalho de
Viveiros de Castro, cuja obra tem posto no devido lugar
a oposição entre natureza e cultura de modo
antropológico - relativizando a dualidade que nós,
ocidentais, exceto no plano religioso, tomamos como
absoluta.