GUSTAVO POLI
Banco Central do Brasil
Jornal O Globo/Nacional - Esportes
sábado, 28 de maio de 2022
Cenário Político-Econômico - Colunistas
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Pareceu uma cena extraída de um filme de ficção pós-
apocalíptico. Os agentes do estado sem rostos, ocultos
atrás de capacetes espelhados, dominando e punindo o
suspeito, empurrando seu corpo para dentro da viatura,
sem conseguir incluir as pernas. As pernas, do lado de
fora, como se informassem: aqui há um homem. E
sobre ele o braço da lei empurra essa porta de metal. O
que fez ou disse esse homem para provocar tamanha
ira?
E então -como se faltasse horror -o gás, para punir o
homem. E matar o homem.
Naquela viatura morreram Genivaldo e seus algozes
sem rosto - provavelmente policiais de extração humilde
que, taxados pela vida, se investiram de justiçamento.
Agora serão justiçados por todos os tribunais que
desenvolvemos, e viverão carregando o carimbo
indelével da desumanidade -ou da humanidade perdida.
Ora, direis, está é uma coluna esportiva. Sim, é -e aqui
ecoam as palavras do técnico do Golden State Warriors,
Steve Kerr - como ontem ecoaram neste mesmo espaço
na coluna do Martín Fernandez. Na última terça, o
treinador bateu na mesa para protestar contra o
massacre de crianças no Texas com arma de guerra.
Kerr não falou do jogo que disputaria, porque há
momentos em que a plataforma esportiva é apenas isso
- uma plataforma, um púlpito, de onde podemos apenas
gritar -e por vezes gritar é preciso.
Houve o jogo - e Steve Kerr perdeu. Venceu o seguinte.
Ele seguiu como nós seguimos -o Fluminense ganhou
de 10 a 1, Flamengo, Corinthians, Galo e Palmeiras (e
Fortaleza e Furacão) se classificaram na Libertadores, o
Botafogo saboreia a Era Textor, o Vasco engata e hoje
tem Liga dos Campeões. Seguimos carregando esses
aparelhos que captam e distribuem a realidade como
nunca antes.
São esses espelhos cotidianos que carregamos nas
mãos - e que nos hipnotizam - a ponto de acreditarmos
que... se há a culpa no cartório... é sempre dos
outros. A morte de Genivaldo seguida pelo gol de ontem
seguida pelo míssil no prédio ucraniano seguido pelo
último deputado gravado falando uma sandice. Uma
dancinha, um susto, o terror, a foto na praia. Qual o
efeito desse rodízio interminável de conteúdo? Vemos
tanta beleza e a brutalidade que é nossa, dessa
humana raça, não de outra.. A anestesia é quase uma
necessidade. Somos muitos severinos ou genivaldos -
roubemos aqui o verso de João Cabral. O sangue que
usamos tem pouca tinta.
Não acredite o leitor que existem muitos brasis -existe
um só... e esse á mesmo - que casa ternura com
maldade, que mistura carnaval com chacina, cujo
liquidificador nos entrega o sorriso do drible e a lágrima
da barbárie. E é nele que enterramos genivaldos
conjecturando se há conserto ou salvação. O Brasil vai
de Genivaldo a Agenor, de Severino a Sócrates, de
Fred e Gabigol a Pazuello. Não veneramos
macunaímas por acaso. Somos compostos por
delúbios, queirozes, joesleys e cabrais. Neymares, vini
juniors, dani alves, martas. E édsons arantes de muitos
nascimentos.